sexta-feira, abril 30, 2010

Amo tracinho te



«Quando pela primeira vez escrevi amote fui repreendida pela gramática Não quis saber Tinha-te mais comigo assim numa palavra só
Quando pela primeira vez soletrei a-mo-te desfiz-te em pedaços mas com pressa e gula te comi inteiro te reuni em mim
Quando pela primeira vez nos começámos a separar respeitei a ortografia e sem dar por isso separei-te de mim : amo tracinho te
Quando pela primeira vez nos re-unimos melancolicamente soletrei a-ma-me como quem esbagulha uma romã
Quando pela primeira vez me disseste amo tracinho te tudo estava certo e solitário eu separada de ti por um pântano de ninguém tu à distância sem mim sem barco e sem vontade Esbracejei não me quis conformar Acenei-te gritei-te de longe Amasme? numa palavra só furiosamente só a dois de braços estendidos a lutar contra os ventos separadores da ortografia e do alto mar Respondeste gritaste claro que te amo te amo
te
amo
escandiam os ventos e o eco em duas palavras separadas
Entre mim e ti o pântano crescia depois secou depois a crosta terrestre desfez-se e refez-se e houve outros novos mares e continentes e tudo ficou então provisoriamente definitivo e adulto reconciliado com a geografia e a gramática : eu tu solidamente sós
amas tracinho me?
amo tracinho te
é claro!»

Teresa Rita Lopes

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quinta-feira, abril 29, 2010

Até ao fim do mundo



Era pedra e sobre essa pedra
Ergueu-se o templo do amor atroz.
Ele de fogo, ela a cordeira
Toda cordura chamando o algoz.

Sangram as tubas: Inês é morta!
Em meigo mito transmuta-a o pranto
Do ermo amante que erra sozinho
No seu deserto de diamante.

Nem ar sangrento buscam seus olhos
Do corpo amado desfeitas pérolas;
E como fera coro os ossos
Da formosura que ao alto o espera

E em desatino da paixão lusa,
Perdida a alma que em Inês tinha,
O fim do mundo ficou esperando
Aos pés da morta, sua rainha.

Natália Correia

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quarta-feira, abril 28, 2010

As andorinhas



Vi-as levantar
e partirem em direcção
ao Sul

molhadas apenas
por uma luz muito alta e límpida
essa água quase rasante
do amanhecer

Voltarão com a Primavera
com o pranto
das últimas chuvas
o cheiro das primeiras flores

quando o ar
se esclarece e é uma cortina aberta
transparente e lavada

quando já nada resta
senão a memória breve
da sua partida

porque só elas partem
e só elas regressam

só elas escrevem o tempo
que sem cessar
se escoa
irremediavelmente.

Luís Serrano

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terça-feira, abril 27, 2010

As mãos



Olhou o pão na mesa e deixou cair
as mãos como sementes
para que tudo crescesse a partir
do chão

olhou o mar

e viu as lágrimas
das trevas
iluminadas pelo firmamento

depois sentiu que se fechasse os olhos
por um pequeno instante
tudo voltaria ao caos

as mães têm as mãos grandes.

Maria Azenha

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segunda-feira, abril 26, 2010

0 Homem e a Água



Deixa-me ser o que sou,
o que sempre fui,
um rio que vai fluindo.
E o meu destino é seguir... seguir para o mar.
0 mar onde tudo recomeça...
Onde tudo se refaz...

Mário Quintana

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domingo, abril 25, 2010

Cantiga de Abril



Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste pais,
e conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitério
toda prisão ou censura,
e o poder feito galdério.
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde. verde e vermelha.

Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por politica demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
E verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Jorge de Sena

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sábado, abril 24, 2010

Poema dos jardins ausentes



Hoje corri todos os jardins da terra
e estou ao pé de ti de mãos vazias meu amor,
os jardins só respiram esse fulgor desnudado
a rutilar caligrafias mesmo no centro da pedra.

Amanhã voltarei a correr todos os jardins
ao ritmo quase imóvel de um segredo,
num murmúrio que preserve o alento
para mergulhá-lo numa boca de mulher.

Hei-de correr todos os jardins sagrados
que habitam subtis e espessos labirintos,
e encontrar os vocábulos das pétalas da rosa
que unem o interdito ao centro das palavras.

E é como se as rosas nascessem dos dedos
como uma raiz imitando os frutos meu amor.

João Rasteiro

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sexta-feira, abril 23, 2010

Underground blues para Jim Morrison



luna roja
y en la radio la precisa melodía
proyecta tus arpegios endiablados
viejo Jim Morrison
arqueas la cintura
la sensualidad de tus labios
y entre filtros de peyote
y vasos de aguardiente
te diriges peligrosamente
hacia el fin
- enciendes el cigarro
alzas la copa de vino
y brindas por ti, por Blake
Artaud, tus oscuros fantasmas -
la mirada extraviada
el seco gemido
nadie entiende el descarnado alarido
que parte el cielo en pedazos
la muerte traidora danzando
sobre tu cuerpo
la soledad desnuda en medio del escenario
el baile indio

el suicidio anunciado

entregando en cada concierto
tu más rotunda agonía
rey de los lagartos.

Leo Zelada

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quinta-feira, abril 22, 2010

Cosmocópula



I

Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras

II

O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso da água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro.

Natália Correia

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quarta-feira, abril 21, 2010

Provérbios sino-hebraicos (adulterados)



1. Mais vale um justo ignorando que o é, do que um ímpio julgando que é justo.

2. Conhecer Deus através de uma tradução é como abraçar uma noiva através das barras da prisão.

3. O Templo à beira do lago não tem olhos para ver a lua.

4. A sensualidade não tem prazo de validade.

5. Há coisas que sabemos para as quais a vida é demasiado pequena.

6. Torna-te discípulo de um tão bom mestre de tal forma que esse mestre se venha a tornar o teu melhor discípulo.

7. A Lei, mesmo quando cala, até aos burros fala.

8. Os pensamentos do sábio surgem sem nenhum esforço e os do estulto não surgem porque muito se esforça.

9. Quando o Templo é muito grande a eficácia do deus foi pervertida.

10. Deus é escrito por linhas tortas. Por quem?

11. Até o cão mais fiel é capaz de morder o próprio dono.

12. Mesmo a conclusão que se tira de mil exemplos é uma conclusão imprudente.

13. A embriaguez rebaixa os esplendores da luxúria.

14. A alegria é o sublime disfarce da sabedoria.

15. Quando o ladrão rouba furtivamente o Estado, rouba descaradamente.

16. Quem tem um fraco pelo vinho encontra sempre uns copos no caminho.

17. A rectidão torna-se viciosa sempre que triunfa sobre os restantes vícios.

18. As melhores intenções desaparecem como foguetes.

19. A audácia leva-nos à glória ou à ruína.
A prudência tolhe-nos os gestos como uma doença.

20. O anão que se torna ministro pode fazer leis mais pequenas, mas também mais eficazes.

21. Um grande talento dificilmente arranja um pequeno emprego.

22. Para aquele que viveu pouco a vida ainda não é um sonho que se está prestes a acabar.

23. O fatalismo torna impraticável a felicidade.

24. A dúvida arruína mais que um emaranhado de mentiras.

25. É em grosseira argila que se esculpem os mais belos motivos.

26. Aquele que é forte raramente vence os seus fracos.

27. O cíume é a mais discreta arma para destruir lares alheios.

28. Os nomes de Deus são tantos quanto as línguas.
Se Deus não fosse poliglota como poderiam os homens ser entendidos.

29. Adão tinha vergonha da sua nudez aos olhos de YHVH enquanto este se ria perante o absurdo da execução do seu cómico guião.

30. Os deuses detestam que os louvem para fins alheios.

31. Uma lei só é rigorosa quando injusta.

32. A culpa dos homens é o sintoma de que ou algo falhou na demiurgia ou há ainda uns buracos por tapar.

33. As preocupações dos pobres são mais baratas que as dos ricos.

34. Aquele que nunca teve um acesso de cólera não sabe até que ponto o mais pequeno fogo pode incendiar uma casa.

35. Enquanto um judeu espirra, o chinês tem um provérbio na ponta da língua.

36. A forma como os homens representam Deus e o mundo é que é imperfeita.

37. Todos julgam que a perfeição é perfeita.
É aí que reside a sua imperfeição. (prov. taoista)

38. Onde a tradição não é criativa, e onde se nega qualquer tradição, o mundo estagna.

Pedro Proença

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terça-feira, abril 20, 2010

Pintando Emoções



Ao
som das doces cascatas
Pintas castelos cintilantes
Abraças íntimos desejos
E absorves calores adormecidos
Dentro de sonhos distantes.

Flutuam seduções na doce brisa do luar
Invadindo as sombras da humildade.
Desvanecem-se os segredos da noite estrelada
Indefinidamente subtis
Na corrente azulada do interior da felicidade.

Brilhos mágicos seduzem eternas ilusões,
Os sentidos deslizam delicadamente acordados,
Abertamente apaixonados,
Incendiando aveludados mistérios
Plantados nos jardins dos mitos.

Multiplicam-se melodias encantadas,
Recordações sem limites emergentes
Puras verdades inteligentes
No império das virtudes imperceptíveis.

Ao som das doces cascatas
Pintas castelos cintilantes
Dentro de sonhos distantes...

Jorge Viegas

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segunda-feira, abril 19, 2010

Provérbios Hot-Zen saloio



As palavras vão indeterminando os mundos.
Assim sendo: é melhor falar ou estar calado?

O céu e a terra deixam que as espadas se pacifiquem a elas mesmas
antes de eles próprios procurarem a fecunda desordem.

Nada do que quer
quer o que é Nada.

Todos os lugares procuram a mente que procura todos os lugares.
Todos os lugares não procuram a mente que não procura todos os lugares.

A mente só mente.
Felizmente.

O pássaro exuberante manifesta a mentira da mentira,
mais forte que a verdade mais gira.

Andando agitadamente, fazendo tudo e mais alguma coisa
A relva cresce e a televisão está acesa.

A luz do dia enegrece mesmo os pensamentos mais desobstruídos.

A sabedoria que as árvores falam
tem demasiadas raízes para percorrer o mundo

O céu deixa pegadas nos pássaros.

Para caminhar na plenitude do finito
o poeta tem que pôr os poemas a suar.

Se encontrares na rua um homeostético
cumprimenta-o com o ruído e o silêncio
simultaneamente.

Se o santo não começar a pôr pantufas em cima da cabeça
quem é que irá ter coragem para o fazer?

Durante longos anos foi um pássaro.
Hoje é uma nuvem na gaiola.

A boca cuja voz inflama a montanha
também faz minetes às freiras.

As linhas dos montes são as mamas do Buda
antes do strip-tease?

No inane vasto um traseiro ou travesseiro
dão um arzinho a nirvana.

Se as brancas nuvens mudam de rumo
é porque nem tudo é fumo de fumo.

Encarar maya ou o samsara
é bem mais duro do que levar estalos na cara.

Para conservares o que não se deixa conservar
tens que destruir o indestrutível.

O gelo não derrete ao passar do leão.

As palavras assassinas são pronunciadas silenciosamente.
O silêncio da libertação está no ruído mais potente.

Mesmo que a espada não se corte
um dia acabará por se cortar.

Há os que vislumbram o sol no meio da chuva
e os que vislumbram a chuva no meio do sol.
Qual destes é o Buda?

Se queres esconder-te de todo o mundo
torna-te exuberante.

Agarra a cauda de um tigre em cima do vulcão.

Sê a lua com muitos cornos ou um sol com muitas trombas.

Se as montanhas estão voando depressa
é porque o iluminado bebeu demasiado vinho.

Os montes azuis são a falta de sossego
e as nuvens brancas asas de morcego.

O que vês é o que está acima do elevado
e abaixo do mais baixo.

Se te encontrares contigo próprio
solta a gargalhada que destrói o mundo.

Lembra-te que ao te livrares do que é profundamente falso
também te livrarás do que é mais verdadeiro.

O que é que é mais sábio que a serpente
e constante que o camaleão?

Pedro Proença

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domingo, abril 18, 2010

Oasis - Don't look back in anger



PS:Desligar o som do blog no lado direito.

sábado, abril 17, 2010



"Não sei por que todos me adoram se ninguém entende minhas idéias."

Albert Einstein

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sexta-feira, abril 16, 2010

A Portugal



Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não.

Jorge de Sena

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quinta-feira, abril 15, 2010

Poema das sete faces



Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade

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quarta-feira, abril 14, 2010

7IM



1. Muitos amores começam pelo fim.
O meu começou pelo e-mail...

3. Todas as noites, antes de dormir, dava corda ao despertador.
Uma noite esqueceu-se do hábito.
Nunca mais acordou.

5. Atingira o fundo do poço. Desde então recusa as mãos estendidas em seu socorro.
O medo de uma nova queda lhe suplanta a vontade de se levantar.

7. O lugar era ermo; o buraco, fundo e escorregadio.
Sobrevivera à queda, mas era certo que ali morreria.
“Ao menos, não será de fome”, consolou-se, depois de constatar a companhia dos ratos.

Wilson Gorj, daqui

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terça-feira, abril 13, 2010

Isso até me agrada. Que me deitem fora



Que me deixem livre de compromissos afectivos.
Ficar ligeiro por dentro; ser como casca só.
Não tropeçar nos detritos humanos
Que me cercam,
Não ter altivez nenhuma nisso.
Ser simplesmente um andante.
Ter o caminho livre.

Raul de Carvalho

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segunda-feira, abril 12, 2010

Rosa com espinhos



Uma rosa cresce na tua ausência. Não
a posso colher, a essa rosa vermelha que
incendeia a secura dos meus olhos. Limito-me
a vê-la, a rosa do centro, na sua rotação
de sentimentos e hesitações. Embarco
no rumo que ela me indica. Sei
que me conduzirá para o porto dos teus
braços, onde ainda estremecem as marés
do amor.

Mas se a tua ausência me oferece
esta rosa, de que me servem os seus
espinhos? Lambo devagar as suas
feridas, sentindo correr pela minha alma
o sangue fresco da tua voz: a voz que abranda
quando o fogo se apaga, e de cuja
brancura se soltam os ventos que empurram
o desejo. Levam-me para
os teus lábios, a quem a rosa
roubou a mais pura cor.

Abraço então o teu corpo de flor, roubando
à rosa o gozo da sua dor.

Nuno Júdice, visto aqui

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domingo, abril 11, 2010

Acerca do amor



Do amor só digo isto:

o sol adormece ao crepúsculo
no oferecido colo do poente
e nada é tão belo e íntimo,

0 resto é business dos amantes.
Dizê-lo seria fragmentar a lua inteira.

Filinto Elísio (Cabo Verde)

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sábado, abril 10, 2010

Jeff Buckley-Hallelujah (Live)



PS:Desligar o som do blog no lado direito.

sexta-feira, abril 09, 2010

Fim de linha



Ouviu animada a cigana decifrar a história desenhada em suas mãos.
Mas morreu bem antes do final da Linha da Vida.
A cigana não tinha visto o atalho.

Ana Flores, daqui

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quinta-feira, abril 08, 2010

La dame à la licorne



Dona Semifofa erguendo o dedo
mindinho arqueado em asa sobre a asa da
chávena (ou xícara) disse: -
- Eu sempre soube que poetas não
são gente em quem confie uma senhora -
e num sorvinho delicado rematou
a mágoa de cinquenta primaveras.
O licorne, num doce balançar do chifre esguio,
gravemente assentiu,
um pouco perturbado
pela insistência obnóxia e recatada
com que a discreta dama confundia,
ou mais que a dama os olhos vagos dela,
o chifre legendário e o metafórico
que de entre as pernas longo lhe descia
ou já de perturbado não pendia.

Torcendo as ancas disfarçadamente
para encobrir das vistas semifofas
essa homenagem à inocência delas
(como o cavalheiro que pousando a mão
assim se esconde em pudicícia o quanto
não esconda muito mais que a discrição obriga),
D. Gil cofiou a capriforme pêra
e de soslaio viu que Dona Semifofa
do branco em ferro assento resvalava
para a verdura em que as florinhas eram
de cores variegadas, salpicantes.
D. Gil era o licorne, e disse com voz cava:
- Mas eu também, minha senhora, nunca
acreditei que de confiança eles fossem.
Se acreditasse, como não teria
a mágoa imensa de não ser centauro? -

No chão, erguendo as pernas, Semifofa uivou:
- Centauro, para quê? Não há centauros.
Licornes, sim, D. Gil, vinde a meus braços.

Jorge de Sena

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quarta-feira, abril 07, 2010

Navio naufragado



Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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terça-feira, abril 06, 2010

Gaiola de vidro



Como paredes
através das quais
o mundo vemos pelo ser dos outros
quem vamos conhecendo nos rodeia
multiplicando as faces da gaiola
de que se tece em volta a nossa vida.

No espaço dentro (mas que não depende
do número de faces ou distância entre elas)
nós somos quem somos: só distintos
de cada um dos outros, para quem
apenas somos a face em muitas,
pelo que em nós se torna, além do espaço,
uma visão de espelhos transparentes.

Mas o que nos distingue não existe.

Jorge de Sena

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segunda-feira, abril 05, 2010

Exercício



Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntou o que significavam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Nuno Júdice

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domingo, abril 04, 2010

Os teus pés



Quando não te posso contemplar
Contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
Teus pequenos pés duros,

Eu sei que te sustentam
E que teu doce peso
Sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
A duplicada purpura
Dos teus mamilos,
A caixa dos teus olhos
Que há pouco levantaram voo,
A larga boca de fruta,
Tua rubra cabeleira,
Pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
É só porque andaram
Sobre a terra e sobre
O vento e sobre a água,
Até me encontrarem.

Pablo Neruda

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sábado, abril 03, 2010

O silêncio



Dos corpos esgotados que silêncio
tão apaziguador se levantava!

(Tinha uma rosa triste nos cabelos,
uma sombra na túnica de luz...)

Para o fundo das almas caminhava,
devagar, o sonâmbulo silêncio.

(Que apertados anéis nos braços nus!)

Mas o silêncio vinha desprendê-los.

David Mourão-Ferreira

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sexta-feira, abril 02, 2010

Ó Véspera do Prodígio! - IV



Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Natália Correia

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quinta-feira, abril 01, 2010

Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas



Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas
E perfuma-as com o odor da sua lenta vulva
Ela tanto pode ser uma fêmea da lua com uma rapariga solar
Nas suas ancas ondula um indolente Outono e nos seus seios desponta a primavera.
Eu vejo-a e não a vejo na brancura da página
porque ela flutua vagamente na distância como uma lua no meio-dia
Mares bosques clareiras fontes em delicadas e delgadas linhas
Flúem com o fulgor dessa mulher azul
As palavras caminham com o ritmo fresco dos seus pés descalços
Sobre uma praia fulva de conchinhas brancas
O seu hálito doce embriaga as leves sílabas
E a doçura do seu lábio impregna as frases nuas
Ela é a presença ausente corpo de aragem viva
E a sua felicidade é tão vaga como vaga a sua longínqua imagem

António Ramos Rosa

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