domingo, julho 20, 2008

A casa



O vaso na casa, a terra húmida trazida do jardim.
Acendo um cigarro, espero o nascer... a rosa ou o sangue ou o dia.
Ocupo os olhos através da janela,
nas árvores sem nada, pobres, enraizadas no outono.
O silêncio, de quando em quando, ilumina a casa.

O corpo, só de o pensar, mexe.
Agito as mãos como se agarrasse um piano.
A janela ensina que o mundo se revolve lentamente.
As amoras abeiradas do muro
delimitam o espaço que a voz alcança.

O vaso alimenta uma solidão pequena.
Acaricio-o pela cor fresca do barro. Ainda ontem repartia a ternura
com as laranjeiras que trouxe do poço para a casa.
Com os passos veio alguma lama.

Os pássaros mais fiéis pousam no parapeito da janela,
é como se perguntassem: então, a terra ainda é só terra?
O vaso permanece no silêncio, não arreda,
acompanha a casa, acompanha o corpo.

Saio para os cogumelos nas traseiras,
fazem parte da sombra da casa, dos ruídos de vida dos insectos.
As pinhas abertas sobre o musgo acendem a lareira.
O vaso não arreda, nem com o lume.

Vem a noite.
A janela é só sombras e gritos.
Para lá do muro há rio.
Ninguém mo disse, oiço-o.

Quando amanhã for dia, o sol iluminará o monte,
então verei o homem que aí vive com as cabras.
Está sempre só. Atira pedras para longe, atinge a saudade.
Dantes tinha mulher, agora só frio e passos.

O vaso na casa, a terra húmida trazida do jardim.
Acendo um cigarro, espero o nascer... a rosa ou o sangue ou o dia.
Gostava de ter mais um corpo, vê-lo crescer.
Ainda ontem gritei para encher a casa.

Bem cedo os carros cantam nas avenidas
e o homem que se levanta hoje, levanta-se para todos os dias.
Pé ante pé, amaldiçoa a vida.

O vaso mantém-se silêncioso, e nem arreda.
Devora a terra, devora a água.
A casa alimenta-se de vida,
tudo o que é morte lhe não interessa.
Escuto apenas os ruídos da madeira a ceder ao fogo.

Escuto de mim para mim estes versos.
Queimo-me a respirar o ar
com os olhos parados frente às maçãs de verão.
Sim vejo a mão, sim vejo o vaso, sim vejo o fogo.
Mas sim não chega.

As cidades têm portas que se fecham,
carros por onde fugir,
janelas por onde desejar.
As cidades têm pontes aonde vâo buscar pessoas.
Mas sim não chega.

O vaso mantém-se silencioso, e nem arreda.
Alimenta uma solidão pequena.
Um homem debruça-se sobre folhas brancas,
desce junto ao vaso ou junto ao verso.
Lá fora, nuvens caminham perseguindo rios.

Que ramo prende um corpo a uma casa,
que água se transporta nessa vontade,
o fogo, o ar, as cinzas, os olhos?

A chaminé ensina, não é a memória
mas o fumo que que assinala vida.
A casa alimenta-se.
Tudo que é morte lhe não interessa.

Era aqui nesta sala contígua à cozinha
que se matava a criação.
Comiam até serem comidos.
E ninguém perguntava porque é que se crescia.
O abandono. O erro. O silêncio dos gansos.
Eu e o vaso.

Eduquei a sensibilidade para sofrer mais tarde.
Quando amanhã for dia, o sol iluminará o monte,
então verei o homem que aqui vive, só, como um grito.
E alguma geada cobrindo os marmelos.

Paulo José Miranda

3 comentários:

Alien8 disse...

Wind,

Olha o namoro, do Fausto! Lá muito em baixo, sinal de que tenho andado arredio. Pois tenho. Até agora, para constatar a tua poesia em letra e imagem.

Beijinho.

Fatyly disse...

Não conhecia e ao ler este poema senti um embalo, uma brisa, uns acordes e como deveria ficar lindissimo musicado por alguém. Um vaso chamado "sentir" no sentido da vida.

Boa escolha. Adorei.

Beijos e um bom domingo**

Paula Raposo disse...

Gostei muito deste poema que nunca tinha lido. Soube-me a solidão...beijos.