sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Pianice



ai, quem me dera ser o seu piano.
você tocando.
: eu piando.

Adelaide do Julinho

Imagem daqui

Porta aberta



Quem tiver coragem que me refreie,
Que me ponha um freio,
Uma mordaça,
E cale a voz que tenho em mim.
Tenho tempestades para dar
A quem se atrever a entrar,
Nas portas que abro aqui.
Quem quiser calmaria
É melhor nem espreitar,
Que não sou
Santuário ou oásis,
E a paz,
Não a encontram em mim.
Mas quem quiser ser vento,
Atravessar tempestades,
Subverter todas as possibilidades
Mergulhar sem saber profundidades...
A porta está aberta,
Pode entrar!

Encandescente, in"Bestiário",pág.68, Edições Polvo

Foto:Janosch Simon

Este inferno de amar!



Este inferno de amar — como eu amo!
Quem mo pôs aqui n’alma… quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida — e que a vida destrói —
Como é que se veio a atear,
Quando — ai quando se há-de ela apagar?
Eu não sei, não me lembra; o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez… — foi um sonho —
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar…
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei… dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Que fez ela? Eu que fiz? — Não o sei
Mas nessa hora a viver comecei…

Almeida Garrett

Foto:Haleh Bryan

O pequeno demiurgo



Escrevo
barco e uma quilha fende o vastíssimo mar
e as árvores crescem dos espaços enevoados
entre olhar e olhar movem-se
animais presos à terra com suas plumagens de ferro
e de orvalho de ouro quando a lua se eclipsa
comunicando-lhes o cio e a nómada alegria de viver

penso outono ou inverno
e o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rosto
sobre o corpo em tímidos gestos
eis o tempo
do capricórnio reduzido ao esconderijo tatuado
na asa mineral da ave em pleno voo e digo nuvens
relâmpago, erva, águas
homem
movimento do susto, oceanos, sal, exaustos corpos
transumantes paixões digo
e surge , irrompe, escorre, ergue-se, move-se, vive
morre
mas não julguem ser trabalho simples nomear
arrumar e desordenar o mundo

para que não se apague esta trémula escrita
preciso do sonho e do pesadelo
da proximidade vertiginosa dos espelhos e
de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas
pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos
da alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço
no fim do sétimo dia.

Al Berto

Foto:David Lesser

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Não adormeças



Não adormeças: o vento ainda no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas mais húmidas e chãs
com que em casa se cozinhavam perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à mingua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu rosto
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.

Maria do Rosário Pedreira

Foto:Yuri Bonder

Impressionante!

Porque tem de se ver para crer.

Notas de ânimo leve



1

Miguel acabou de ler de manhã o livro que começara também de manhã. Procurou a lista telefónica, na lista o número e no número alguma coragem. Da editora não chegaram sequer a dizer-lhe que não (“Liga para aqui cada doido, valha-nos Deus!” Clique, som contínuo. Som intermitente). Inquirira com delicadeza se aos senhores editores seria possível providenciarem e remeterem-lhe por correio o mesmo volume, mas em branco... Suspirou. Dum livro assim, era-lhe importante conhecer o peso da tinta.

2

Ângelo é um escritor de última geração que recorre a métodos ao mesmo tempo moderníssimos e estranhamente primitivos (ou antes – muitos dirão – espantosamente desadequados). Começa sempre por imprimir a laser uma página perfeitamente negra. Com finas lixas, x-actos e agulhas, procede então à remoção de toda a tinta em excesso. Liberta assim o texto que permanecia, desde o início, aprisionado nas trevas. Um raspão mal medido sobre uma vírgula pode arruinar-lhe horas de trabalho. Escreve pouco, naturalmente.

Carlos Tijolo visto na Minguante Nº8

Imagem daqui

Corpo adentro



Teu corpo é canoa
em que desço
vida abaixo
morte acima
procurando o naufrágio
me entregando à deriva.

Teu corpo é casulo
de infinitas sedas
onde fio
me afio e enfio
invasor recebido
com licores.

Teu corpo é pele exata para o meu
pena de garça
brilho de romã
aurora boreal
do longo inverno.

Marina Colasanti

Foto:Keiko Guest

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Desafio proposto pela Fatyly



Fui desafiada pela Fatyly do blog Uma Simples Cubata, para falar de seis insignificâncias sobre mim.

Não me é muito fácil responder a este desafio, mas vou tentar:)

1-Sou viciada em música.

2-Guardo os isqueiros quando se acabam (pancadão)lol

3-Adoro ler e leio sempre primeiro o fim dos livros.

4-Tal como a Fatyly dou umas boas gargalhadas quando me saem.

5-Inconscientemente observo o comportamento dos outros, porque fui treinada para isso quando estudava.

6-Sou viciada em fotografia e as que saem mal aproveito para "brincar":)

Era suposto passar isto a mais 6 pessoas, mas sou franca, só fiz porque foi a Fatyly:)

Se alguém quiser pode fazer nos comentários.

Nadador



O que me encanta é a linha alada
das tuas espáduas, e a curva
que descreves, passáro da água!

É a tua fina, ágil cintura,
e esse adeus da tua garganta
para cemitérios de espuma!

É a despedida, que me encanta,
quando te desprendes ao vento,
fiel à queda, rápida e branda

E apenas por estar prevendo,
longe, na eternidade da água,
sobreviver teu movimento...

Cecília Meireles

Foto:Christian Coigny

Dá-me a tua mão



Dá-me a tua mão,
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
- para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
atá o Abismo da Ternura Derradeira.

José Gomes Ferreira

Foto:Touhami Ennaddre

Envelhecer



Quanto mais envelhecia,
quanto mais insípidas me pareciam
as pequenas satisfações que a vida me dava,
tanto mais claramente compreendia
onde eu deveria procurar a fonte
das alegrias da vida.

Aprendi que ser amado não é nada,
enquanto amar é tudo.

O dinheiro não era nada,
o poder não era nada.

Vi tanta gente que tinha dinheiro e poder,
e mesmo assim era infeliz.

A beleza não era nada.
Vi homens e mulheres belos,
infelizes, apesar de sua beleza.

Também a saúde não contava tanto assim.
Cada um tem a saúde que sente.

Havia doentes cheios de vontade de viver
e havia sadios que definhavam angustiados
pelo medo de sofrer.

A felicidade é amor, só isto.

Feliz é quem sabe amar.
Feliz é quem pode amar muito.
Mas amar e desejar não é a mesma coisa.
O amor é o desejo que atingiu a sabedoria.
O amor não quer possuir.
O amor quer somente amar.

Hermann Hess visto no Palavras d'Ouro

Foto:Rakesh Syal

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Certezas, precisam-se



Preciso urgentemente de adquirir meia dúzia de valores absolutos,
inexpugnáveis e impenetráveis,
firmes e surdos como rochedos.

Preciso urgentemente de adquirir certezas,
certezas inabaláveis, imensas certezas, montes de certezas,
certezas a propósito de tudo e de nada,
afirmadas com autoridade, em voz alta para que todos oiçam,
com desassombro, com ênfase, com dignidade,
acompanhadas de perfurantes censuras no olhar carregado, oblíquo.

Preciso urgentemente de ter razão,
de ter imensas razões, montes de razões,
de eu próprio me instituir em razão.
Ser razão!
Dar um soco furibundo e convicto no tampo da mesa
e espadanar razões nas ventas da assistência.

Preciso urgentemente de ter convicções profundas,
argumentos decisivos,
ideias feitas à altura das circunstâncias.
Preciso de correr convictamente ao encontro de qualquer coisa,
de gritar, de berrar, de ter apoplexias sagradas
em defesa dessa coisa.
Preciso de considerar imbecis todos os que tiverem opiniões diferentes

da minha,
de os mandar, sem rebuço, para o diabo que os carregue,
de os prejudicar, sem remorsos, de todas as maneiras possíveis,
de lhes tapar a boca,
de lhes cortar as frases no meio,
de lhes virar as costas ostensivamente.
Preciso de ter amigos da mesma cor, caras unhacas,
que me dêem palmadinhas nas costas,
que me chamem pá e me façam brindes
em almoços de camaradagem.
Preciso de me acocorar à volta da mesa do café,
e resolver os problemas sociais
entre ruidosos alívios de expectoração.
Preciso de encher o peito e cantar loas,
e enrouquecer a dar vivas,
de atirar o chapéu ao ar,
de saber de cor as frequências dos emissores.
O que tudo são símbolos e sinais de certezas.
Certezas!
Imensas certezas! Montes de certezas!
Pirinéus, Urais, Himalaias de certezas!

António Gedeão

Foto:Grzegorz Szczerbaciuk

Libelo



De que mais precisa um homem senão de um pedaço de mar – e um barco [com o

nome da amiga, e uma linha e um anzol pra pescar ?

E enquanto pescando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos, uma pro caniço, outra pro queixo, que é para ele poder se
perder no infinito, e uma garrafa de cachaça pra puxar tristeza, e um pouco
de pensamento pra pensar até se perder no infinito...

..............................

De que mais precisa um homem senão de um pedaço de terra -- um pedaço [bem
verde de terra -- e uma casa, não grande, branquinha, com uma horta e um
modesto pomar; e um jardim – que um jardim é importante – carregado de [flor
de cheirar ?

E enquanto morando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos para mexer a terra e arranhar uns acordes de violão quando a
noite se faz de luar, e uma garrafa de uísque pra puxar mistério, que casa
sem mistério não valor morar...

.................................

De que mais precisa um homem senão de um amigo pra ele gostar, um [amigo bem
seco, bem simples, desses que nem precisa falar -- basta olhar -- um
desses que desmereça um pouco da amizade, de um amigo pra paz e pra [briga,
um amigo de paz e de bar ?

E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos para apertar as mãos do amigo depois das ausências, e pra
bater nas costas do amigo, e pra discutir com o amigo e pra servir bebida à
vontade ao amigo ?

...................................

De que mais precisa um homem senão de uma mulher pra ele amar, uma [mulher
com dois seios e um ventre, e uma certa expressão singular ? E enquanto
pensando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de [um
carinho de mulher quando a tristeza o derruba, ou o destino o carrega em
sua onda sem rumo ?

Sim, de que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher -- as
únicas coisas livres que lhe restam para lutar pelo mar, pela terra, pelo
amigo ..."

Vinícius de Moraes

Foto:Dean Agar

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Da margem esquerda da vida



Da margem esquerda da vida
Parte uma ponte que vai
Só até meio, perdida
Num halo vago, que atrai.

É pouco tudo o que eu vejo,
Mas basta, por ser metade,
P'ra que eu me afogue em desejo
Aquém do mar da vontade.

Da outra margem, direita,
A ponte parte também.
Quem sabe se alguém ma espreita?
Não a atravessa ninguém.

Reinaldo Ferreira

Foto:Manuel Holgado

Minha mulher



A minha mulher
tem mistério insondável,
recato impenetrável
aos olhos voyeurs.

A minha mulher,
tem uma nudez invisível
e um olhar transparente
só para o que quer.

A minha mulher
tem o encanto das fadas
e a magia das bruxas
quando estamos em nós.

Ela sabe fazer-se inteira
nunca está em pedaços
sabe todas perícias
atar e soltar nossos nós.

Nela, o meu corpo presente
é mais do que tudo,
do eterno, um estudo,
quando estamos a sós.

Ela tem a magia dos celtas,
obtém a têmpera correta,
de traz-nos o instante
de toda eternidade.

Ela tem o erotismo dos anjos
o silêncio dos sábios
ao dizer o que é
ser a minha mulher.

Calex Fagundes

Foto:Elena & Vitaly Vasilieva

Eu serei esse mar...



Tenho ainda na boca o sabor de teus beijos
e nos olhos a morna luz de teu olhar,
- há em teu corpo alvoradas rubras de desejos
e rompantes de vagas livres sobre o mar...

Sabes bem que te adoro, eu o disse a tua boca
naquele instante longo a cheio de delicias,
e em minhas mãos provaste a ânsia incontida e louca
de uma declaração de amor a de carícias. . .

Consegui te alcançar em minhas mãos, - assim
como quem colhe um fruto entre as sombras dos ramos...
Toquei-te o corpo inteiro.. . a pensar que a sem fim
o incêndio que nos queima enquanto nos amamos!

Hás-de ser uma praia branca ao meu enleio
nua, deitada ao sol, exposta ao mar a aos ventos,
- e eu serei esse vento de ternuras cheio!
e eu serei esse mar de desejos violentos!

Um do outro vamos ser, assim . . . divinizados
por um amor perfeito em comunhão com o céu,
- ver o céu a morrer em tens olhos parados
e a terra, aberta em flor, em teus lábios de mel. . .

Fundiremos no mesmo abraço o mesmo assomo,
dois num só - na infinita integração do amor,
tu, perfeita, eu perfeito, ambos perfeitos, como
a terra e o céu, o mar e a praia, o sol e a flor!

J.G. de Araújo Jorge

Foto:Zacarias Pereira da Mata

domingo, fevereiro 24, 2008

***



Plena mulher, maçã carnal, lua quente,
espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
que antiga noite o homem toca com seus sentidos?
Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos e dois corpos
por um só mel derrotados.
Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia
corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra de um raio.

Pablo Neruda

Foto:Elena & Vitaly Vasilieva

18 horas TMC



Eram 6 da tarde quando cheguei ao Céu
uma orquestra de rouxinóis tocava boleros
e Deus estagiava poemas de amor na Mont Blanc

Temperatura agradável, nem frio de traições
nem calor de granadas em estufa de aguardente
o tempo que faz no Céu toda a Eternidade

Deram-me logo uma "Tequilla Sunrise" gelada de sorrisos
e uma coelhinha da Playboy com seios naturais
ofertou-se de mansinho para misturarmos peles

Depois fomos jantar trufas, vinho do Porto e Häagen Dazs
o restaurante era uma ostra acetinada com cheiro de lírios
e um "maître" vestido de anjo e curso de "saucier"

À noite, assistimos à "première" da nova versão da "Bíblia"
num cinema parecido com o castelo da Bela Adormecida
onde os bidões de pipocas sabiam a caviar e “foie-gras”

Gostei de ver Tom Cruise como Abraão, apesar da altura
as barbas compensaram e o moço está outra vez charmoso
não obstante Nicole vender agora o corpo em Hollywood

Trouxeram-me ao quarto num Rolls Royce verde de metais
conheci pessoalmente o saxofone tenor de Stan Getz
que ia deitado nos estofos a tocar “Apasionado”

Tomei um duche daqueles automáticos, novidade celestial
e deixei-me boiar na cama que cheirava a lavado de Ajax
entrou então, nua de pecados, uma massagista tailandesa

E cada vez que me pianava as costas bronzeadas
saíam-me dos poros os últimos demónios escondidos
e sentia-me como um alpinista no topo de mim

Quando acordei, sem remelas, ressacas, remorsos ou memórias
Bogart veio tomar comigo o uísque da manhã, sorriu-me
e disse que no Céu era sempre assim todos os dias.

Luís Graça visto no Palavras D'Ouro

sábado, fevereiro 23, 2008

***



Era uma vez... numa terra muito distante...uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima.
Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo era relaxante e ecológico...
Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo.
A tua mãe poderia vir morar connosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre...
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:
- Eu, hein?... nem morta!

Luís Fernando Veríssimo

River dance

Porque é maravilhoso e quero partilhar.

Zeca Afonso 2 de Agosto de 1929- 23 de Fevereiro de 1987



Os Vampiros

No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas pela noite calada

Vêm em bandos com pés veludo
Chupar o sangue fresco da manada
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada [bis]

A toda a parte chegam os vampiros
Poisam nos prédios poisam nas calçadas
Trazem no ventre despojos antigos
Mas nada os prende às vidas acabadas

São os mordomos do universo todo
Senhores à força mandadores sem lei
Enchem as tulhas bebem vinho novo
Dançam a ronda no pinhal do rei

Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

No chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos na noite abafada
Jazem nos fossos vítimas dum credo
E não se esgota o sangue da manada

Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhe franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

Zeca Afonso

Imagem do Kaos

(Sátira aos HOMENS quando estão com gripe)



Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas,. creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisasna e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sózinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

António Lobo Antunes visto no Palavras D'Ouro

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Amizade/Citação



"Seus amigos de verdade amam você de qualquer jeito."

Luís Fernando Veríssimo

Foto:Yuri Bonder

Extreme-More Than words



Uma música com muitos anos, mas bela:)

Sei os teus seios



Sei os teus seios.
Sei-os de cor.

Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.

Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.

Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!

Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!

Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p'la manhã?

Quantas vezes
Interrogastes, ao espelho, os seios?

Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!

Quantos seios ficaram por amar?

Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!

Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!

Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em deseperadas, quarentonas lágrimas...

Seios fortes como os da Liberdade
-Delacroix-guiando o Povo.

Seios que vão à escola p'ra de lá saírem
Direitinhos p'ra casa...

Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes filhos alheios!

Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...

O amor excessivo dum poeta:
"E hei-de mandar fazer um almanaque
da pele encadernado do teu seio"

Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!

Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.

Botas, botirrafas
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!

Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!

"Oculta, pois, oculta esses objectos
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos"

Raimundo Lúlio, a mulher casada
Que cortejastes, que perseguistes
Até entrares, a cavalo, p'la igreja
Onde fora rezar,
Mudou-te a vida quando te mostrou
("É isto que amas?")
De repente a podridão do seio.

Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...

Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...

Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...

Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!

Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne.

Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser

Alexandre O'Neill

Foto:Yuri Bonder

Modo de amar – IX



Enlaçam as pernas
as pernas
e as ancas

o ar estagnado
que se estende
no quarto

As pernas que se deitam
ao comprido
sob as pernas

E sobre as pernas vencem o gemido

Flor nascida no vagar do quarto.

Maria Teresa Horta

Foto:Anna.Edyta Przybysz

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Orfeu Rebelde



Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga

Foto:Piotr Kowalik

Lamento por diotima



O que vamos fazer amanhã
neste caso de amor desesperado?
ouvir música romântica
ou trepar pelas paredes acima?

amarfanhar-nos numa cadeira
ou ficar fixamente diante
de um copo de vinho ou de uma ravina?
o que vamos fazer amanhã

que não seja um ajuste de contas?
o que vamos fazer amanhã
do que mais se sonhou ou morreu?
numa esquina talvez te atropelem,

num relvado talvez me fusilem
o teu corpo talvez seja meu,
mas que vamos fazer amanhã
entre as árvores e a solidão?

Vasco Graça Moura

Foto:Alex Sade

***



De noite, amada, amarra teu coração ao meu
e que eles no sonho derrotem
as trevas como um duplo tambor
combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.
Noturna travessia, brasa negra do sonho.
Interceptando o fio das uvas terrestres
com pontualidade de um trem descabelado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.
Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
à tenacidade que em teu peito bate.

Com as asas de um cisne submergido,
para que as perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma só chave,
com uma só porta fechada pela sombra.

Pablo Neruda

Foto:Yvan Galvez

Receita para fazer um Herói



Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão,
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

Reinaldo Ferreira

Leve beijo triste



Teimoso subi
Ao cimo de mim
E no alto rasgei
As voltas que dei

Sombra de mil sóis em glória
Cobrem todo o vale ao fundo
Dorme meu pequeno mundo

Como um barco vazio
P'las margens do rio
Desce o denso véu lilás
Desce em silêncio e paz
Manso e macio

Deixa que te leve
assim tão leve
Leve e que te beije meu anjo triste
Deixo-te o meu canto canção tão breve
Brando como tu amor pediste

Não fales calei
Assim fiquei
Sombra de mil sóis cansados
Crescendo como dedos finos
A embalar nossos destinos

Deixa que te leve
assim tão leve
Leve e que te beije meu anjo triste
Deixo-te o meu canto canção tão breve
Brando como tu amor pediste.

Paulo Gonzo

Foto:Yuri Bonder

Esquece-te de mim, amor



Esquece-te de mim, Amor,
das delícias que vivemos
na penumbra daquela casa,
Esquece-te.
Faz por esquecer
o momento em que chegámos,
assim como eu esqueço
que partiste,
mal chegámos,
para te esqueceres de mim,
esquecido já
de alguma vez termos chegado.

António Mega Ferreira

Foto:Stefan Beutler

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Calam-se as palavras



Calam-se as palavras
Quando num beijo,
A minha boca, a tua encontra.
Esquecemse as palavras
Quando num abraço,
O meu corpo, tornas o teu.
Como é simples o silêncio
Dos gestos que trocamos.

Encandescente, in "Bestiário", pág.40, Edições Polvo

Foto:Touhami Ennadre

Poema melancólico a não sei que mulher



Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Miguel Torga

Foto:Stanmarek

Paladar



Na ponta
da língua
o doce sabor
do beijo

no meio
sensível
ao sal

sou
u
o
r

saboroso
é o gozo
que inunda
[acres]
ao fundo

Valéria Tarelho

Foto:Paul Bolk

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Queda



Na rua, um bêbado cai sempre depressa. Tem uma queda pesada, que é como o corpo deve cair. Já o sem-abrigo também cai depressa, como quem não quer causar embaraço a ninguém. Parece que a física a isso obriga: a importância dos corpos determina o seu peso, logo a rapidez da sua queda.

O rico, por seu lado, cai devagar. Movimento implicado pela maior leveza de conteúdo emocional. Um homem que se dirija para o seu emprego de manhã (num banco, digamos) cai sempre em câmara lenta, por mais pressa que tenha. Vejamos: o pé prende no intervalo das pedras do passeio, a perna flecte e já não volta ao seu lugar, a outra perna não sustém o susto nem o equilíbrio, o corpo entra em perda, a pasta voa com os papéis. Isto passa-se em plena rua: toda a gente vê um homem rico cair.

Já o sem-abrigo cai sem barulho, cai sem imagem. Cai depressa. Com peso, que é o peso do conteúdo. O número de olhos determina a velocidade dessa queda. Quanto mais pessoas olharem para o sem-abrigo, mais devagar ele cai, por necessidade de entretenimento. Mas quantos olhos se pousam no sem-abrigo?

João Carlos Silva visto na Minguante Nº8

Foto:Frank Melchior

Balada dos casais



Os casais são tão iguais,
por isto se casam
e anunciam nos jornais.

Os casais são tão iguais,
por isto se beijam
fazem filhos, se separam
prometendo
não se casarem jamais.

Os casais são tão iguais,
que além de trocar fraldas,
tirar fotos, acabam se tornando
avós e pais.

Os casais são tão iguais,
que se amam e se insultam
e se matam na realidade
e nos filmes policiais.

Os casais são tão iguais,
que embora jurem um ao outro
amor eterno
sempre querem mais.

Affonso Romano de Sant'Anna

Foto:Milosz Wozaczynski

Respeito



Respeito o poder do galo.
Respeito a voz do leão,
Respeito as tetas da vaca,
Respeito a pele do cação.
Respeito o ferrão da abelha,
Respeito as penas do pato,
Respeito as unhas do gato,
Respeito as cãs duma velha;
Respeito o velo da ovelha,
Respeito o nobre cavalo,
Respeito o rim-rim do ralo,
Respeito o fim da baleia,
Respeito a voz da sereia,
Respeito o poder do galo.
Respeito o mau papagaio,
Respeito o bom pintarroxo,
Respeito a forma do mocho,
Respeito o verde do gaio,
Respeito o fino garraio,
Respeito as pernas do anão,
Respeito os pés do pavão,
Respeito a velha serpente,
Respeito a língua da gente,
Respeito a voz do leão.
Respeito a cor da rolinha,
Respeito o zum do besoiro,
Respeito as armas do toiro,
Respeito o fel da pombinha,
Respeito o pôr da galinha.
Respeito o mal da macaca,
Respeito o pêlo da alpaca.
Respeito a tal cegarrega.
Respeito o bico da pega.
Respeito as tetas da vaca.
Respeito as asas do grilo,
Respeito a feia minhoca,
Respeito o berro da foca,
Respeito o vil crocodilo,
Respeito o curso do esquilo,
Respeito o ser tubarão,
Respeito os dentes do cão.
Respeito os coices da mula.
Respeito o gosto da lula
Respeito a pele do cação.

E muito obrigado pela atenção que nos dispensaram!

Alexandre O'Neill visto no Palavras D'Ouro

Foto:Rolf S. (Unterberken)

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Neste silêncio...



Olhando nos meus, teus olhos gritavam:
diz, diz que me amas, diz da paixão
que sentes por mim...

Tremendo em silêncio, teus lábios diziam:
beija-me, deixa-me beber teu amor,
passear no teu corpo, fazer-te gozar...

Teus seios eretos, ansiando diziam:
somos teus, para sempre,
suga-nos e bebe nosso sumo de amor!

E à noite, teu corpo tremendo, pedia:
vem e me toma, guarda-te e morre
dentro de mim!

Teu sexo húmido, ansiando, chorava:
vem, te prometo prazeres sem fim,
vem meu amor e renasce em mim!

E eu, surdo da vida e surdo do amor,
não ouvia os teus gritos teu desejo por mim...

E quando o tédio infame, afinal tomou conta
e o descaso doído nos fez companhia,
afinal nossa hora chegou...

E sem gritos nem choros,
sem amor e sem ódios,
sem eu o saber,
levaste minha vida.

E hoje, no imenso vazio,
de um silêncio sem fim,
eu ouço teus gritos
que antes não ouvia...

Artur Ferreira

Foto:Mehmet Alci

Acerca de gatos



Contigo chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.

Eugénio de Andrade visto no Palavras D'Ouro

Foto:Neven Jurkovic

domingo, fevereiro 17, 2008

Olhar



Olhas-me entre a surpresa e o desencanto
e eu fico embaraçado ante esse olhar:
nada podia perturbar-me tanto
como uns olhos roubados ao luar
das noites em que o tempo e o lugar
se faziam de espuma, luz e espanto.
Mas o que importa, sobre a ruinosa
erosão dos desenganos,
é esta força de quem ousa
amar-te acima do passar dos anos.

Torquato da Luz

Foto:Salih Güler

Para te ter aqui



Envolvi-me em ti
Nessas vidas quentes
Entre os linhos salvos e sãos
Já que estou aqui
Traz-me também as sobras
Desses maus augúrios vãos
E suporta-me os desejos
Nem que os deixes de sentir
Encontrarei um motivo
P’ra te ter aqui
P’ra te ter aqui
Sucumbi, por Deus
Nesse leito baptizado
E fazia-o outra vez
Só p’ra ter-te ao meu lado
E sentir-te tão perto
Fazer o que jamais
Alguém me fez
E permite que te acolha
Nesses braços frios sem ti
Trocava os sonhos por nada
P’ra te ter aqui
P’ra te ter aqui
P’ra te ter aqui

Vozes da Rádio

Foto:Haleh Bryan

sábado, fevereiro 16, 2008

Das utopias



Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!

Mário Quintana

Imagem daqui

Gotan Project-Milonga de Amor



Já que se está numa onda de música, porque não mais música e dança?:)

6 músicas da minha juventude

A Gi pediu-me para indicar 6 músicas que, na minha juventude, tenham feito "abanar o capacete". Acontece que nessa época havia de tudo, desde o Disco aos slows.

Além disso sempre tive gostos muito ecléticos, como agora poderão ver/ouvir.



E mais aqui, aqui, aqui, aqui e finalmente aqui.

Agora vou desafiar outros 6:

Fatyly
Isabel F
Peciscas
Repensando
Xanax
O melhor dos dois mundos

Rangia entre nós dois a música da areia



Rangia entre nós dois a música da areia
como se fosse Agosto a dedilhar um sistro
Agora está fechada a casa onde te amei
onde à noite uma vez devagar te despiste

Floresça o clavicórdio em pleno mês de Outubro
Na harpa de Setembro entrelaçou-se a vinha
A que vem de repente entre os dois este muro
feito de solidão de sal de marés vivas

Podia conjurar-te a que não me esquecesses
mas é longe do Mar que os navios são tristes
De que serve o convés com a sombra das redes

Quis a tua nudez Não quis que te despisses

David Mourão-Ferreira

Foto:Yuri Bonder

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

O espírito



Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanentemente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indeme ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Natália Correia

Foto:Jody Melanson

Sinfonia



Enternece-me a música
que desprendem os teus olhos,
melodia única,
da família dos sonhos.

Misteriosas paisagens
espraiam no teu rosto
o som líquido das vagas
confluindo no porto.

Não sei de outra sinfonia
para a perfeição dos dias.

Torquato da Luz

Foto:G S t e v e

Rasgo o Melancólico



Rasgo o melancólico interior dos insectos
atravesso a sabedoria das infindáveis areias do sono
sou o último habitante do lado mitológico das cidades

por vezes consigo acordar
sacio a sede com a tua sombra para que nada me persiga
teço o casulo de cocaína escondo-me no mel da língua
lembro-me... fomos dois amigos e um cão sem nome
percorrendo a estelar noite noutros corpos

mas já me doem as veias quando te chamo
o coração oxidado enjaulou a vontade de te amar
os dedos largaram profundas ausências sobre o rosto
e os dias são pequenas manchas de cor sem ninguém

ficou-me este corpo sem tempo fotografado à sombra da casa
onde a memória se quebra com os objectos e amarelece no papel
pouco ou nada me lembro de mim
em tempos escrevi um diário perdido numa mudança de casa
continuo a monologar com o medo a visão breve destes ossos
suspensos no fulcro da noite por um fio de sal

partir de novo seria tudo esquecer
mesmo a ave que de manhã vem dar asas à boca recente do sonho
mas decidi ficar aqui a olhar sem paixão o lixo dos espelhos
onde a vida e os barcos se cobrem de lodo

pernoito neste corpo magro espero a catástrofe
basta manter-me imóvel e olhar o que fui na fotografia
não... não voltarei a suicidar-me
pelo menos esta noite estou longe de desejar a eternidade

Al Berto

Foto:Piotr Kowalik

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Versos desencontrados



Em nada ou em ninguém
Eu deveria acreditar!
Nem no amor, nem na vida. - As ilusões,
Mesmo até quando vêm disfarçadas
E já conhecem o cliente, hesitam,
E chegam a partir envergonhadas...
As ilusões -
Também têm os seus mais preferidos;
E àqueles que ficaram na ruína
Do pensamento, e são - por graça de conquista
Os pálidos mortais desiludidos,
A esses já não correm muito afoitas
Na mentira das grandes fantasias!
- É por isso que eu hoje ainda vivo
À margem das ridículas tragédias
Que lemos nos jornais todos os dias.

Atulham-se os presídios; no degredo,
Atados à saudade, vão ficando,
- Como lesmas ao luar, esses que matam,
E pelo amor tombaram na desgraça:
- Um sonho, um beijo, uma mulher que passa!
Só a guitarra os lembra ao triste fado
Nos ecos diluídos e chorosos
E fundos do lusíada, coitado!
Eu olho para tudo que enxameia
Nesta viela escura da existência
Como quem se debruça num abismo
E fica revolvendo a consciência
Na tristeza infinita de um olhar!...
- A humanidade é vil e o seu egoísmo
Tem base na vileza de vexar.

Sim;
Por qualquer coisa os homens tudo vendem:
Palavra, dignidade, a própria vida,
Só porque desconhecem a doutrina
Bendita de Jesus; - esse tesoiro,
Essa fonte de luz onde aprendi
A ser leal e amigo e a respeitar
Aquela que nos risos do meu lar
Desembaraça os fios de uma queixa
No mistério que cinge o verbo amar.

Mas quando um ano acaba e outro vem,
Embora a minha fronte e os meus cabelos
Envelheçam na marcha para o fim
E um sabor de renúncia e de cansaço
Vibre, cantando, aqui, dentro de mim,
Rebenta-me no peito uma esperança
Tão lúcida, tão viva, e tão ungida
Na fé que ponho erguendo a minha prece
Que peço a Deus do fundo da minha alma
Que a todos os que sofrem neste mundo
Dê o conforto de uma vida calma.

António Botto

Foto:Dirk Vermeirre

Postagem colectiva contra a pedofilia



O Peciscas fez um óptimo post sobre o assunto.

Quem quiser pode visitá-lo.

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Amizades



Ai as amizades! São-nos tão necessárias como água que sacia a sede. Podemos viver sem amores, mas nunca sem amigos.

Um amigo não é perfeito, mas também se idealiza.
Um amigo está disponível, mas também ausente.
Um amigo tem gostos comuns, mas também prima pela diferença.
Um amigo é um espelho, mas também fica baço por vezes.
Um amigo é uma porta escancarada, mas também com janelas abertas.
Um amigo é eterno, mas também mortal…

Assim sendo, as amizades deveriam ser ouro sobre azul, flores em deserto, estrelas em céu cinzento. Pois deveriam, mas nem sempre são, porque as amizades nem sempre são recíprocas, porque nem sempre investem a mesma energia na relação para que funcione, porque se criam expectativas que não são cumpridas…

A amizade é como uma estrada com dois sentidos: eu estou numa ponta e tu estás na outra e a amizade torna-se possível se percorremos a distãncia que nos separa. Se for sempre eu a caminhar numa estrada de sentido único, não existe amizade. Não vale a pena então dispender tanta energia, mais vale acabar com essa estrada e mudar de direcção, encontrar outras estradas mais férteis.

Podemos deixar a amizade esmorecer aos poucos como uma planta que se deixa de regar e que vai definhando até morrer ou podemos simplesmente acabar com ela, como quem se divorcia mas sem processo em tribunal, porque as amizades moribundas também fazem sofrer quem mais investiu e não ganhou nada em troca. Uma amizade perdida é também perder um pouco de nós porque investimos muito de nós numa construção a dois.

O sofrimento de uma amizade que se esfumou com o tempo tem a sua razão de ser, para aprendermos a ter cuidado uma próxima vez, para descobrirmos dentro de nós por que precisamos assim tanto de alguém que não nos quer, para olharmos em volta e darmos uma oportunidade a quem quer realmente ser nosso amigo e nunca reparamos…

Dedico este texto aos meus amigos, àqueles que nunca me recusam uma palavra nem um abraço. Obrigada pela amizade!

Jacky

Projecto



Desta vez vou escrever-te um poema que vai ser
um poema de amor, mas que não é apenas um poema de amor. O
amor, com efeito, é algo que não cabe num poema; pelo contrário,
o poema é que pode caber no amor, sobretudo quando te abraço, e
sinto os teus cabelos na boca, agora que a tua voz me corre pelos
ouvidos como, num dia de verão, a água fresca corre pela
garganta. A isto, em retórica, chama-se uma comparação; e pergunto
o que é que o amor tem a ver com a retórica, ou por que é
que o teu corpo se teme de transformar numa metáfora - rosa,
lírio, taça, qualquer objecto que tenha, na sua essência, um
elemento que me possa levar até ele, como se fosse preciso, para te tocar,
substituir-te por uma outra imagem, ver em ti o que não és,
nem tens de ser, ou ainda transformar-te num lugar comum, que
é aquilo em que, quase sempre, acabam os poemas de amor. Assim,
este poema de amor é, mais do que um poema de amor, um
exercício para escrever um poema de amor - mas um poema de amor
a sério, sem comparações nem metáforas, só contigo, com o
teu corpo, com a tua voz, com os teus cabelos, com aquilo que é
real, e não precisa de sair da realidade para se tornar objecto de
um poema de amor em que o amor, finalmente, deixa de ser
o objecto único do poema, que se preocupa acima de tudo com
a retórica, as imagens, o equilíbrio das formas. Mas, pergunto, não
é o teu corpo uma flor? Não é a tua boca uma rosa? Não são lírios os teus
seios? Tudo, então, se transforma: e o que tenho nas mãos é uma imagem,
a pura metáfora da vida, a abstracta metamorfose das emoções. O
resto, meu amor, é tu - e é por isso que o poema de amor que te
escrevo não é, finalmente, um poema de amor.

Nuno Júdice

Foto:Thomas Doering

Teoria do amor



Amor é mais do que dizer.
Por amor no teu corpo fui além e
vi florir a rosa em todo o ser
fui anjo e bicho e todos e ninguém.

Como Bernard de Ventadour amei
uma princesa ausente em Tripoli
amada minha onde fui escravo e rei
e vi que o longe estava todo em ti,

Beatriz e Laura e todas só tu
rainha e puta no teu corpo nu
o mar de Itália a Líbia o belvedere

E quanto mais te perco mais te encontro
morrendo e renascendo e sempre pronto
para em ti me encontrar e me perder.

Manuel Alegre

Foto:Piotr Kowalik