quinta-feira, abril 05, 2007

Guerra Junqueiro em 1896



"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e
sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de
vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a
energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as
moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem,
nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque
sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um
lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro
de lagoa morta. [.]

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não
descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter,
havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública
em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a
infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem
que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral,
escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro [.]

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado
de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela
abdicação unânime do País. [.]

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de
fazer dela saca-rolhas;

Dois partidos [.] sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes,
[.] vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos
nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades
do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão
que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma
sala de jantar."

Guerra Junqueiro, "Pátria", 1896

Imagem daqui

Recebido por email

7 comentários:

MariaTuché disse...

O que este Senhor escreveu há mais de 100 anos aplica-se totalmente hoje em dia.

Excelente post amiga Wind.

Beijos e boa Páscoa

poetaeusou . . . disse...

Numa rua de má fama
faz negócio um charlatão
vende perfumes de lama
anéis d'ouro a um tostão
enriquece o charlatão
No beco mal afamado
as mulheres não têm marido
um está preso, outro é soldado
um está morto e outro ferido
e outro em França anda perdido
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra a bracadabra
Na ruela de má fama
o charlatão vive à larga
chegam-lhe toda a semana
em camionetas de carga
rezas doces, paga amarga
No beco dos mal-fadados
os catraios passam fome
têm os dentes enterrados
no pão que ninguém mais come
os catraios passam fome
(É entrar,...)
Na travessa dos defuntos
charlatões e charlatonas
discutem dos seus assuntos
repartem-s'em quatro zonas
instalados em poltronas
Pr'á rua saem toupeiras
entra o frio nos buracos
dorme a gente nas soleiras
das casas feitas em cacos
em troca d'alguns patacos
(É entrar,...)
Entre a rua e o país
vai o passo dum anão
vai o rei que ninguém quis
vai o tiro dum canhão
e o trono é do charlatão
(É entrar,...)
É entrar, senhorias
É entrar, senhorias
É entrar, senho...
//////////
in) sérgio Godinho

Maria Carvalho disse...

Por demais actual!!

ivamarle disse...

este Sr e o Eça de Queiroz (e não só), continuam actuais na acutilância das suas análises políticas; é como se tivesse sido escrito agora...

mfc disse...

E dizem que as mesmas águas não passam mais que uma vez sob a mesma ponte??!!

papagueno disse...

E continua mais actual que nunca.

Fatyly disse...

A foto está genial e de facto faço minhas as palavras de mfc.

Beijocas