quinta-feira, março 01, 2007

Nos bolsos da sonâmbula



A solidão estava por toda a casa, enquanto caminhava ausente de si. Por vezes dançava e ria, no triunfo de uma quase debilidade. O corpo movendo-se entre o espasmo e a heresia. Dança de esvoaçante nado. O garoto a via no mergulho em um engodo ancestral, debatendo-se pelas ramagens da própria queda. Havia um cheiro que levaria consigo até a essência de seus escritos. A mulher ali à frente ritmava-lhe a infância. Ele, o insone; ela, a sonâmbula.

Nada disso. Intuía ser outra a razão da presença/ausência de ambos. Nada lhe era de todo invisível. Vendo-a insinuar-se no desenho rítmico de seus acolhimentos, um mundo começava a abrir-lhe parênteses, recebia recados do acaso, anotava sigilosas imagens. Vê-la caminhar pelas dobras de um abismo interior era uma fortuna inigualável. Decerto deixaria que toda a infância fosse tomada pelo espectro indomável daquela mulher recebendo distintas entidades. Mas não. O tempo com ela não se deteve o suficiente. Logo se foi sem tambores.

Os tambores ele próprio desenhou. A sonâmbula trazia muitas vozes nos bolsos de sua pele. Antes dela a mãe tremia ao descrever assombrações que lhe assaltavam as noites. O convulsivo dança enquanto dura a projeção do abismo. Aqueles tambores todos sondavam-lhe o baile ulterior. Acompanhara o roçado secreto daquela mulher, manifestações com chumaço ou praga, guizalhados, bufos, zumbidos, martelares, guinchos, cacarejos. Tambores.

Amara aquela mulher, mais do que duas primas que sorrateiras enfarinharam de encantos alguns momentos guardados de memória. A idéia do perdido se construía com delineada firmeza. Um tufo de alegorias, uma untura de espantos, o isqueiro do cognoscível. A memória dançava. Corpo segurado por outro, agitando-se em círculos incansáveis. Mares de fibra cobrindo e descobrindo a cena. Um teatro do encoberto. Terra de outros ares sendo ela mesma a própria terra e sua impossibilidade.

O corpo nu lhe atraía, tanto quanto a astúcia e o menoscabo do riso dos tambores. Porém nada como a inocência daquele olhar quando retornava a si e lhe indagava o que se passara. A solidão voltava de uma longa viagem. Mil vezes a mesma tarde, o mesmo longo trajeto, insondável sempre. Um precário destino com os bolsos esburacados por planos que jamais compartilhariam realidade alguma.

Floriano Martins

Foto:Dennis Mecham

3 comentários:

Belzebu disse...

Este texto tem uma beleza e uma densidade que o tornam difícil de comentar. Acho que vou ter de o ler novamente, mas não é agora. É que é tarde e já não há condições!

eheh!! Um beijo e saudações infernais!

Maria Carvalho disse...

Váris formas de interpretar (aliás como em tanta outra coisa). Gostei das imagens que me transmite de um sonho/realidade...beijinhos.

poetaeusou . . . disse...

O sonanbulismo da vida.
A vida no sono.
O acordado sonanbulo.

bj)