domingo, dezembro 17, 2006

Poetas Escolhidos V - Como se faz um Poema



A máquina de costura

Talhem-se as palavras justas
Ao corpo do sofrimento
As imagens serão curtas
Amplos os ombros do tempo
Soltos os panos dos olhos
Bordados o do talento
Cosidos os dos ouvidos
Ao forro do pensamento.

Tome-se o têxtil do tema
E corte-se o que é preciso
Com a tesoura do riso.
Mas na orla do poema
Depois da obra acabada
Deixe-se ao menos um dedo
Da tristeza embainhada.

José Carlos Ary dos Santos, in "Obra Poética", pág.166, Edições Avante

O Poeta tranquilo

O Poeta tranquilo falava do domínio da técnica,
De versos alexandrinos, controle da métrica,
Do poema construção académica…
E eu pensei: Disso nada sei.
O Poeta tranquilo falava das influências e conceitos.
De versos encandeados, esquematicamente construídos,
Perfeitos!
E eu pensei: Disso nada sei.
Não sei de teorias literárias,
Não uso silogismos nem metáforas,
E perfeita sou no desconhecimento e imperfeição.
Senti-me pequena entre o Poeta grande e tranquilo.
Eu
Que do poema só sei o corpo
Eu
Que do poema só sei a emoção.

Encandescente, in "Palavras Mutantes", págs.63 e 64, Edições Polvo

A bela e pura

A bela e pura palavra Poesia
Tanto pelos caminhos se arrastou
Que alta noite a encontrei perdida
Num bordel onde um morto a assassinou.

Sophia de Mello Breyner Andersen, in "Mar Novo", pág.20, Edições Caminho

Escrita

Tamborilar de gotas no telhado:
- A escrita da chuva.

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág. 132, Edições Manuel Filipe

Moto contínuo

Que seria do vento sem as ondas?
Que seria das ondas sem as fráguas?
Que seria das fráguas sem as gaivotas?
Que seria das gaivotas sem ter o cais?
Que seria do cais vazio de mágoas?
Que seria das mágoas sem o vento?

Manuel Filipe, in "Poemas de Manuel Filipe", pág. 46, Edições Manuel Filipe

Foto:Yuri B

7 comentários:

António disse...

Meu Deus, Isabel!
Estive uma semana sem vir aos blogs e tu postaste tanta coisa que eu só li algumas delas, inclusivé um bonito poema teu.
Permite-me que te sugira que posts menos vezes para dar tempo a que as pessoas possam apreciar melhor o que escolhes para esta magnífica colectânea.
Obrigado pelo teu comentário.
A descrição da cruel morte do porco é uma realidade da época (e penso que ainda se faz assim, pelo menos nas aldeias).
Volta sempre!

Beijinhos

wind disse...

António , eu posto porque me dá prazer e quando me apetece.
Para ser "direitinha" já chega o social que fazemos no emprego, por exemplo.
Aqui ainda sou livre:)
beijos

Fatyly disse...

Estou a gostar imenso destes teus "Poetas escolhidos" porque sendo tão diferentes consegues a mesma sintonia poética e mensageira!
Lindo e aplaudo-te de pé!

Beijos

Anónimo disse...

For someone who works with words, you remind us that the whoel si greater than any sum of the parts we might infintely dissect. Poetry is the great "No!" to our pretending to understand how and why we use language, because at its best, it gives us meaning in ways we never thought possible. Your words and images show me that beauty is not just a possibility. Thank you, again, wind, as always.
Beijos.

mfc disse...

Uma rapsódia lindíssima!
Parece que estou a ouvir o Ary a declamar... até estremeço!

wind disse...

Thanks for your kind comment Geoffrey.
I only choose the poets and the images:)
beijos

Maria Carvalho disse...

Belos, belos!! Óptimas escolhas como habitualmente!! Beijinhos.