segunda-feira, abril 24, 2006

Apparatus musico-organisticus



São duas da manhã em Passau,
quando, não conseguindo dormir,
o Kapellmeister do bispo,
Georg Muffat,
atravessa os corredores do palácio

e de corredor em corredor,
ao longo do trajecto,
de archote em archote,
de prega em prega
no roupão arrastado,
o seu semblante
se vai tingindo progressivamente
dos mais diversificados tons.

é algures numa noite dos finais
do século dezassete,
numa Europa, como sempre,
em desassossego.

mas agora na igreja,
onde tudo está silencioso,
só as imagens
olham compungidamente
as cores do arco-íris
espalhadas no pavimento,
sobre as reticuladas decorações
do mármore

(e, em fundo de cena,
apenas dois pequenos pajens
de calças arregaçadas

fogem definitivamente
como vultos assustados
para a negridão do anonimato,
para o esquecimento da História,
ao ver a aproximação
da sombra do Músico –

conformados com o seu ofício
de simples figurantes).

assim pode-se portanto
trabalhar,
subir ao órgão, tocar as teclas,
mexer os pedais,
dobrar o corpo todo
sobre a volúpia da escrita.

enquanto nas câmaras vedadas
homens e mulheres gemem
bebendo mutuamente as suas
mais íntimas secreções;

enquanto nas florestas escuras
os cavaleiros que desenharão a História
se preparam para, ao alvorecer,
queimar com o seu esperma negro
as searas e a virgindade dos campos,

o Fabricante dos Sons –

absorto como é costume vê-lo
nas gravuras que até nós chegaram –

apenas acende uma pequena luz
que lhe ilumine a pauta,
a pena, o frasco de tinta, as teclas;

que lhe permita conduzir a mão
para a estranha, rara,
imprevisível adequação
entre todos os instrumentos:

a qual, a acontecer,
só aqui se dará;

pois o Músico sabe
que está sozinho
ante a majestade da noite,
tentando acompanhar a rota,
as linhas de luz, dos astros,
para lá dos vitrais;

e sentindo a face pálida do Senhor
que fez o Universo
a olhar para si, como se a Verdade
duma harmonia primordial
- qual choque de lança -
o interpelasse.

a esta hora, uma rosácea de milhões de cores
volteja permanentemente
sobre o enxadrezado dos pavimentos.

a capela acende-se toda
numa nitidez excessiva;

a retina é irrigada
quase até à cegueira.

por mais alta que soe
a música do Compositor, ela
é neste momento inaudível
pela corte,
pelos seus contemporâneos,
distraídos no sono, ou como sempre
no delírio dos pequenos
divertimentos, combinações,
infinitas redes de intercâmbios
que incansavelmente se entretêm
a entretecer,
embebidos no suor
das suas vidas particulares.

assim, às primeiras notas,

uma torrente entra pela nave principal
como se fosse uma inundação;
tranquila marcha, e ascensão
que salpica
as sandálias dos santos;

e todos os tectos se iluminam,
e insuflam, fazendo vibrar
as figuras pintadas,
acentuando-lhes as poses.

as cúpulas incham
como se um sistema sanguíneo
percorresse por dentro
as paredes da igreja,

e os seus vasos se dilatassem
num êxtase sem limites.

a música é então um corpo vivo
que está prestes a ser estraçoado
por quatro cavalos.

Vitor Oliveira Jorge
Abril 2006, Porto

Imagem daqui

1 comentário:

Anónimo disse...

realise o sonho