sexta-feira, março 31, 2006

Liberta em pedra



Livre, liberta em pedra.
Até onde couber
tudo o que é dor maior,
por dentro da harmonia jancente,
aguda, fria, atroz,
de cada dia.

Não importam feições,
curvas de seio e ancas,
pés erectos à luz
e brancas, brancas, brancas,
as mãos.

Importa a liberdade
de não ceder à vida
um segundo sequer.

Ser de pedra por fora
e só por dentro ser.
- Falavas? Não ouvi.
- Beijavas? Não senti.
Morreram? Ah, Morri, morri, morri!
Livre, liberta em pedra,
voltada para a luz
e para o mar azul
e para o mar revolto…
E fugir pela noite,
sem corpo, sem dinheiro,
para ler os meus santos,
e os meus aventureiros,
(para ser dos meus santos,
dos meus aventureiros),
filósofos e nautas,
de tantos nevoeiros.

Entre o peso das salas,
da música concreta,
de espantalhos de deuses,
que fará o Poeta?

Natércia Freire

Foto:Katarzyna Widmańska

Nada ficou no lugar



Nada ficou no lugar
Eu quero quebrar essas chícaras
Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família

Eu vou escrever no seu muro
E violentar o seu rosto
Eu quero roubar no seu jogo
Eu já arranhei os seus discos

Que é pra ver se você volta
Que é pra ver se você vem
Que é pra ver se você olha pra mim

Nada ficou no lugar
Eu quero entregar suas mentiras
Eu vou invadir sua aula
Queria falar sua língua

Eu vou publicar os seus segredos
Eu vou mergulhar sua guia
Eu vou derramar nos seus planos
O resto da minha alegria

Que é pra ver se você volta
Que é pra ver se você vem
Que é pra ver se você olha pra mim

Adriana Calcanhoto

Foto:Lutz Behnke

quinta-feira, março 30, 2006

Verão



Não faltes ao encontro
com o sol:
-Os verões são
e serão breves...


Poema:Manuel Filipe

Foto:José Marafona

Há palavras que nos beijam



Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes

Alexandre O'Neill

Foto:Gianni Candido

quarta-feira, março 29, 2006

She is so beautiful



"She is so beautiful, I don't know what I gonna do..."

Waterboys

Foto:Eric Richmond

Frases



"Un suicida es un asesino introvertido.


"Un asesino es un suicida con vocación social."


Anónimo

Imagem daqui

Recusa



Não sei,
mal te conheço,
nem pensei
se te mereço.


Poema:Manuel Filipe

Foto:René Asmussen

Lisboa



Como estrela profunda sem pontas
vigias os sonos
com os teus olhos de mãe
numa doce penumbra
que nos toca e respira
e no incerto peito brilhas sempre
uma esperança
um fado de embalar
num murmúrio que cala
Tocas-nos como um arrepio
nesse olhar cristalizado
estendido sobre a distância dos telhados
Tens-nos neste engano suspensos
nesta plataforma de incêndios
reflectidos no brilho dos azulejos
sempre que as ruas trazem
noites que voam
como sonhos que mentem
Que se não toque sequer na notícia
da tua boca fria
onde a carícias que determinas
janelas se arrebatam em ondas
na ausência do Tejo
e o silêncio que desce do céu
onde te adormentas
se faz interromper cercando as tardes

João Martim

imagem daqui

terça-feira, março 28, 2006

Um adeus português



Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

***
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill

Imagem daqui

Coreografia



No palco da noite bailado de corpos
Cenário de sombras
esculpidas em nu
Tu danças as mãos
inscreves contornos
na minha nudez
Eu sou dimensão
que dança em teu espaço
Não temos cansaço
Só temos volúpia
Desejo
Harmonia
Vontade de luta
Ao longo de ti descubro caminhos. Trajecto de boca
E danço contigo
E esqueço a memória
Eu sou o teu sangue
A mesma saliva
O mesmo suor
Nós somos a mesma
Mulher-Repetida.

Manuela Amaral

Foto:Victor Melo

segunda-feira, março 27, 2006

Aula de pintura



Enquanto enrubesço
me ensina a pintar com o corpo
me ensina a perder os medos
e a poder sujar as pontas dos dedos
as unhas e as palmas das mãos
nas tintas de todas as cores
enquanto enrubesço em vinho tinto
sê meu mestre
amor.

Cyana Leahy-Dios

Foto:Stanmarek

Amor é bicho instruído



Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Sabine Schönberger

domingo, março 26, 2006

Da sedução dos anjos



Anjos seduzem-se: nunca ou a matar.
Puxa-o só para dentro de casa e mete-
-Lhe a língua na boca e os dedos sem frete
Por baixo da saia até se molhar
Vira-o contra a parede, ergue-lhe a saia
E fode-o. Se gemer, algo crispado
Segura-o bem, fá-lo vir-se em dobrado
P'ra que do choque no fim te não caia.

Exorta-o a que agite bem o cu
Manda-o tocar-te os guizos atrevido
Diz que ousar na queda lhe é permitido
Desde que entre o céu e a terra flutue –

Mas não o olhes na cara enquanto fodes
E as asas, rapaz, não lhas amarrotes.

Bertolt Brecht

Foto:Orazio Centaro

Devia morrer-se de outra maneira



Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira

Foto:José Marafona

Quanto de ti, Amor...



Quanto de ti, amor, me possuiu no abraço
em que de penetrar-te me senti perdido
no ter-te para sempre -
Quanto de ter-te me possui em tudo
o que eu deseje ou veja não pensando em ti
no abraço a que me entrego -
Quanto de entrega é como um rosto aberto,
sem olhos e sem boca, só expressão dorida
de quem é como a morte -
Quanto de morte recebi de ti,
na pura perda de possuir-te em vão
de amor que nos traiu -
Quanta traição existe em possuir-se a gente
sem conhecer que o corpo não conhece
mais que o sentir-se noutro -
Quanto sentir-te e me sentires não foi
senão o encontro eterno que nenhuma imagem
jamais separará -
Quanto de separados viveremos noutros
esse momento que nos mata para
quem não nos seja e só -
Quanto de solidão é este estar-se em tudo
como na ausência indestrutível que
nos faz ser um no outro -
Quanto de ser-se ou se não ser o outro
é para sempre a única certeza
que nos confina em vida -
Quanto de vida consumimos pura
no horror e na miséria de, possuindo, sermos
a terra que outros pisam -
Oh meu amor, de ti, por ti, e para ti,
recebo gratamente como se recebe
não a morte ou a vida, mas a descoberta
de nada haver onde um de nós não esteja.

Jorge de Sena

Foto:Lutz Behnke

sábado, março 25, 2006

Amor, pois que é palavra essencial



Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Sergey Ryzhkov

sexta-feira, março 24, 2006

Pouco me importa



Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.



Alberto Caeiro

Foto:Gianni Candido

Façamos um trato esta noite...



Façamos um trato esta noite... não sejamos tão realistas.
Você geme e suspira, eu ouço
enquanto minha boca te explora como louco
flutuando em luas surrealistas.
Façamos um trato esta noite... efêmera é esta carne que nos lacra.
O tempo pára enquanto te despes.
O mundo desaba quando te vestes.
Ama-me antes que o pudor te rasgue como faca.

Façamos um trato esta noite... as lágrimas são cristais do coração.
Eu sinto o fel em teus lábios maculados.
Vejo o abismo de teus olhos mascarados
que se escondem atrás de tormentos vãos...
Façamos um trato esta noite... não adianta fugir da própria vida !
Ainda temes a flor pelos espinhos.
Ainda crês que terminaremos sozinhos.
E o amor é não mais que uma mentira.
Façamos um trato esta noite... prometo te convencer na quietude
que o amor ideal é ao desfolhar dos dias
a felicidade nublando nosso ódio
e ter consigo sempre esta virtude.

Anjo Hazel

Foto:Lutz Behnke

quinta-feira, março 23, 2006

Poema em linha recta



Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

Foto:Stanmarek

Cheiro



ontem à noite
sonhei de corpo inteiro
– acordei com teu cheiro

Alonso Alvarez

Foto:Ira Bordo

quarta-feira, março 22, 2006

Frase/Pensamento



Época triste a nossa... mais fácil quebrar um átomo do que o preconceito!



Albert Einstein

Imagem daqui

Encuentro



Besos, caricias, encuentros
mujeres a flor de piel.
Cuerpos desnudos
almas vestidas de amor
listas para danzar
en la fiesta de la unión.
Lucha, discurso, revuelta
intensidad que nos confronta
crecemos con energía, vitalidad y miedos.
Máscaras que caen al suelo
rodando a los pies del imperio.
Música
Alegría
Poesía
erotismo por siglos retenido
despertando hoy, para sentirnos,
bugas, lesbianas, dudosas
rompiendo cadenas
bailando al ritmo de la vida.
Brujas, magas, curanderas
entregándonos con fuerza
destruyendo esquemas.
Amigas nuevas y viejas conocidas
parejas
novias
compañeras
unidas al fin en el espacio.
Lágrimas
risas
promesas
deseo cumplidos y anhelos
volando por el tiempo
desencuentros que se quedan en el camino,
recuerdos del futuro que presiento.

Amparo Jimenez

Foto:Stanmarek

terça-feira, março 21, 2006

Dia Mundial da Poesia



Os Direitos Inalienáveis do Leitor


1º-O Direito de não ler.

2º- O Direito de saltar páginas.

3º-O Direito de não acabar um livro.

4º- O Direito de reler.

5º-O Direito de ler não importa o quê.

6º-O Direito de amar os "Heróis" dos romances.

7º-O Direito de ler não importa onde.

8º-O Direito de saltar de livro em livro.

9º-O Direito de ler em voz alta.

10º-O Direito de não falar do que se leu.


Daniel Penac

Imagem daqui

Federico Garcia Lorca



Água com farolitos
a água
Federico.

Lua nos olivais
a lua
Federico.

Laranjas de ouro
laranjas
Federico.

Gitanos que cantam
gitanos
Federico.

Tua alma traída
a tua alma
Federico.

II

Federico, aonde vais?
– a Granada .

E a tua voz de jasmins ?
– amordaçada.
E tua fronte cigana
– assassinada.

III

Ante a lua comovida,
cobre-se a cela de nardos,
sexta-feira da Paixão,
véspera do teu Calvário.
Um tremor de inquietos pássaros
paira em teus olhos cerrados
e um lençol de pesadelos
sobre teu corpo deitado.
O pensamento repousa
num romanceiro gitano
mas nas ruas de Granada
percorre um frêmito estranho.
um sino sem esperança
anuncia a madrugada.
Uma hora
(angústias e solidão)
duas horas
(as estrelas se escondem)
três horas
(cravos martirizados)
quatro horas
( a morte afia seus punhais)
cinco horas
(chora o regato e o rouxinol).
Levam-te por uma estrada
de espinhos e crocodilos
como uma pomba aprisionada,
às cinco da madrugada.
As Bestas galopando
às cinco da madrugada
em seu tropel de espantos
às cinco da madrugada.
E quando por ti perpassa
às cinco da madrugada
um calafrio das lâminas,
descerram-se todos os audários
e os lírios se enrubescem
às cinco da madrugada.
Às cinco da madrugada!
Eram as cinco em todos os relógios!
Eram as cinco nos campos de Granada!

IV

Federico assassinado
na branca areia de Espanha
e uma rosa andaluza
sobre lençóis de holanda.
Seu sangue espalha no ar
um leve olor de lavanda,
seus ossos se pulverizam
em estrelinhas de nácar
e um pranto entre os ciprestes,
poesia inacabada,
soluça os versos mozárabes
de um romance fantasma.
la guada civil caminera
a Federico levava:
ela, fome de pantera,
ele, orgulho de prata,
ela, veias insensíveis
e olhos frios, sem alma,
apaga a luz das estrelas
no sangue da madrugada.
Mil pandeirinhos sossegam
Os seus murmúrios de água.
Um anjo deita a cabeça
sobre uma alva almofada
e a Morte com dedos finos
toca a sua velha guitarra.
Por Málaga ou Córdoba,
ou por Sevilha ou Granada
vagueia como sonâmbula
uma voz assassinada.

Cláudio Murilo Leal

Imagem daqui

segunda-feira, março 20, 2006

Inebriantes na dança do amor



Minha mente é só desejo:
Minha boca clama pelo teu beijo,
Meu corpo pulsa pelo teu toque,
Meu ser estremece pelo teu olhar.

Eu sou,
inteiramente,
lua,
nua,
tua.

Desejo acima de desejo
Corpo sustentando corpo
Alma comportando alma.

Tu
infinitamente
no meu
íntimo...

Nós dois
Inebriantes
Na dança do amor
A tocar
A sentir
A gozar
Na explosão do depois...

Ana C. Pozza

Foto:Lutz Behnke

O nevoeiro



O nevoeiro suspende-lhe a vida
como dois belos seios diante dos olhos,
humidade tão contrária à chuva,
aos dias em que se procura abrigo
ainda que seja numa mentira ou no passado.

Este branco que o impede de ver,
como se não fosse possível
morrer ou continuar vivo,
mais forte do que a sua moral,
há-de atrasá-lo para o seu destino,

com a ideia de ser castigo
por ter dormido fora de casa.
Porque a hipocrisia é a única coisa
que persiste no nevoeiro.
Não há sequer as horas de prazer,

de entretenimento pelo menos foi,
e realmente vividas a noite passada
com a rapariga que gemia
como se mentisse ou se a verdade
não fosse senão um episódico momento.

No nevoeiro há apenas que ter cuidado,
evitar que o carro vá à berma,
manter todas as luzes ligadas
e seguir devagar, esperando
que os outros façam o mesmo.

Paulo José Miranda

Foto:João Coutinho

domingo, março 19, 2006

O quadro



Gostava de inventar um quadro teu
Com cores para além do arco-íris,
(paleta que um poeta me ofereceu…)
Fixar a tua alegria, se sorrires.

Mas falha o engenho e não há tons,
Quando a beleza é calma e entorpece
Não logro retratar a alma, os dons,
E o meu entusiasmo desfalece.

Talvez azul distante no olhar…
Talvez negro profundo nos cabelos…

Interdito, quedo-me a sonhar
Com amores irreais, com a alegria
De ficar, sôfrego dos teus desvelos,
Parado, frente a uma tela vazia.

Poema:Manuel Filipe

Foto:Gianni Candido

Dourada face



Dourada face, que me espia interrogativa,
Pareces dizer:
“O que trazes para mim, um verso?
Me contemplas pensativa
Enquanto tentas desvendar o meu mistério.
Te desafio: o que te intriga?...
Serão meus olhos baços que te atraem,
Fruto de lembranças, tempo vivido,
Dores sofridas, talvez mágoas?
Ou será meu nariz longo e largo
Antítese da beleza consagrada
Ou ainda meus lábios finos,
Quase um traço,
Fechados, a enclausurar palavras,
Abortar sorrisos,
Tão econômicos, enigmáticos?...

Mas...sou máscara
Dourada máscara de olhos baços.
Posso me adaptar à tua face:
Esconder tua alegria (inalterável)
Ou te contagiar (ai de ti)
com minhas mágoas...”

Cecília Quadros

Tela:Valdir Rocha

sábado, março 18, 2006

Sexta feira à noite



Sexta-feira à noite
os homens acariciam o clitóris das esposas
com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
contam dinheiro papéis documentos
e folheiam nas revistas
a vida dos seus ídolos.

Sexta-feira à noite
os homens penetram suas esposas
com tédio e pênis.
O mesmo tédio com que todos os dias
enfiam o carro na garagem
o dedo no nariz
e metem a mão no bolso
para coçar o saco.

Sexta-feira à noite
os homens ressonam de borco
enquanto as mulheres no escuro
encaram seu destino
e sonham com o príncipe encantado.

Marina Colasanti

Imagem daqui

sexta-feira, março 17, 2006

Lugar onde



Há um lugar onde o olhar se faz silêncio,
há um lugar onde a luz rompe na bruma,
há um lugar onde repousa a dor mais crua;
No meio do mar,
onde esvanece,
onde se esfuma.

Um castelo de ar,
um certo canto de outro mundo,
alva coroa de inocência ou negro manto;
No meio do mar,
no seu abismo mais profundo,
onde as penas não nos pesem tanto, tanto…

Por ele partiram,
se deitaram a matar,
com as velas desfraldadas, uma a uma,
aqueles que se perderam,
por achar
o refúgio do Sol,
além da espuma.

Poema:Manuel Filipe

Foto:José Marafona

Teu corpo principia



Teu corpo principia
Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.
Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.
Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)
Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.
Silêncio e sol - verdade,
respiração apenas.
Amor, eu sei que vives
num breve país.
Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.
Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.
ó maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.
ó vida perfumada
cantando devagar.
Enleio-me na clara
dança do teu andar.
Por uma água tão pura
vale a pena viver.

António Ramos rosa

Foto:Lutz Behnke

quinta-feira, março 16, 2006

Frase/Pensamento



«Só conheço duas coisas infinitas, a estupidez humana e o universo. E não tenho a certeza quanto ao universo»


Einstein


Foto:Gianni Candido

Frase de Al Berto



"Poderás deitar fora a minha roupa e todos os meus objectos pessoais, para onde vou não preciso deles".


Al Berto

Foto daqui

Mocinhas gráceis...



Mocinhas gráceis, fungíveis
Mimosas de carne aérea
Que pela erecção dos centauros
Trepais como doida hera!
Por ardentes urdiduras
De Afrodite que abonais
Passais como queimaduras
E tudo em fogo deixais.

Ofegar de onda retida
Na ocupação epidérmica
De serdes a exactidão
Florida da primavera,
Todas de luz invadidas,
Soi, porém, as irreiais
Bonecas de sol sumidas
No fulgor com que alumbrais.

Lá no fundo dos desejos
Chegais macias e quentes
Com violas nos cabelos,
Nas ancas, quartos crescentes;
Nas pernas, esguios confeitos,
Na frescura o vermelhão
De uma alvorada que rompe
Em seios de requeijão.

Enleais, mas de enleadas,
Ó volúveis, ó felinas!
Saltais fazendo tinir
Risadas de turmalinas;
E com as asas do segredo
Que vos faz misteriosas
– Pois sendo divinas, sois
Do breve povo das rosas –,
Adejais de beijo em beijo
Já que para gerar assombros
Vicejam as folhas verdes
Que vos farfalham nos ombros.

Ó doçaria que em línguas
Acres sois torrões de mel,
Quando idoneamente ninfas
Vos vestis da vossa pele!
Se a olhares venéreos furtar-vos
Em roupas não vale a pena,
Pois mesmo vestidas estais
Nuinhas de graça plena,
De esbelta nudez plantai
Róseos calcanhares nos dias
Fugazes, não vá Vulcano
Levar-vos para sombras frias;
Não sequem os anos corpinhos
De aragem que os deuses sopram,
Que os anos são os malignos
Sinos que pela morte dobram.

Mocinhas fúteis que sois
Da vida as espumas altas
Leves de não vos pesar
O peso de terdes almas;
Que essa força de encantar,
Ó belas! cria, não pensa.
Ser perdidamente corpo
É a vossa transparência.

Natália Correia

Foto:Georg Suturin

Da grande página aberta do teu corpo



Da grande página aberta do teu corpo
sai um sol verde
um olhar nu no silêncio de metal
uma nódoa no teu peito de água clara

Pela janela vejo a pequenina mão
de um insecto escuro
percorrer a madeira do momento intacto
meus braços agitam-te como uma bandeira em brasa
ó favos de sol

Da grande página aberta
sai a água de um chão vermelho e doce
saem os lábios de laranja beijo a beijo
o grande sismo do silêncio
em que soberba cais vencida flor

António Ramos Rosa

Foto:Shubina Olga

quarta-feira, março 15, 2006

A meias



Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo
um cigarro e tu fumas do
meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu. Dá-te
gozo esse roubar
de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo
a meias.

João Luís Barreto Guimarães

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Escrita



Tamborilar de gotas no telhado:
-A escrita da chuva.


Poema:Manuel Filipe

Foto:Maury Perseval

terça-feira, março 14, 2006

Comunhão



Eu me refaço em ti.
Sou eu, completo, por inteiro,
sou você, sou nós, sou ser.
És parte de mim, indivisível,
és coração que pulsa no meu peito,
és luz a brilhar no meu olhar,
és música a tocar nossa canção,
és ternura de mãos entrelaçadas,
és carinho ao tocar de peles.
Eu me refaço em ti.

Luiz Carlos Amorim

Foto:William Ropp

Nem velas nem molho branco



Nem velas nem molho branco
hoje nosso jantar
acontece por baixo da mesa

desfias minhas pernas de seda
teu beijo promete mais tarde

jogo a toalha de renda no chão
me rendo.

Martha Medeiros

Foto:Stanmarek

segunda-feira, março 13, 2006

Pensamento/Reflexão



As Pequenas Injustiças


Não me conformo com as pequenas injustiças. Aceito as grandes, porque são inevitáveis, como as catástrofes, e atestam a impotência dos deuses.
Aquela criança, descalça, apenas precisava de uns sapatos. Se tivesse nascido sem pés, não era tão grande a minha revolta.


António Arnaut, in 'As Noites Afluentes'

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Merda



Nem a loucura do amor, da maconha, do pó, do tabaco e do álcool
Vale a loucura do ator quando abre-se em flor sob as luzes no palco
Bastidores, camarins, coxias e cortinas
São outras tantas pupilas, pálpebras e retinas
Nem uma doce oração, nem sermão, nem comício à direita ou à esquerda
Fala mais ao coração do que a voz de um colega que sussurra "merda"
Noite de estréia, tensão, medo, deslumbramento, feitiço e magia
Tudo é uma grande explosão mas parece que não quando é o segundo dia
Já se disse não foi uma vez, nem três, nem quatro
Não há gente como a gente, gente de teatro
Gente que sabe fazer a beleza vencer pra além se toda perda
Gente que pôde inverter para sempre o sentido da palavra "merda"
Merda, merda pra você
Desejo merda
Merda pra você também
Diga merda e tudo bem
Merda toda noite e sempre a merda.

Caetano Veloso

Foto:José Marafona

domingo, março 12, 2006

Valsa nos ramos



Caiu uma folha.
E duas.
E três.
Na lua nadava um peixe.
A água dorme uma hora
e o mar branco dorme cem.
A dama
estava morta na rama.
A monja
cantava dentro da toronja.
A menina
pelo pinho ia até à pinha.
E o pinho
buscava a plúmula do trino.
Mas o rouxinol
chorava suas feridas em redor do sol.
E eu também
porque caiu uma folha
e duas
e três.
E uma cabeça de cristal
e um violino de papel.
E a neve poderia com o mundo,
se a neve dormisse todo o mês,
e os ramos lutavam com o mundo,
um a um,
dois a dois
três a três.
Oh duro marfim de carnes invisíveis!
Oh golfo sem formigas ao amanhecer!
Chegará um torso de sombra
coroado de louros.
Será o céu para o vento
duro como uma parede
e os ramos arrancados
irão dançar com ele.
Um a um
em volta da lua,
dois a dois
em volta do sol,
e três a três
para que os marfins adormeçam bem.

Frederico García Lorca

Foto:Oleg Titov

Frases



"Não há vivos, há os que morreram e os que esperam a vez."


Carlos Drummond de Andrade

Foto:Natasha Zborovskaya-Sigawi

Poema para os teus seios



Cerro olhos pra não ver,
e mãos pra não apalpar,
e bocas pra não chupar
teus seios.
Desejo beber teu leite,
azeite de oliva branca,
e provar com minha língua
o macio do teu peito.
E se em inútil trabalho
te afasta a blusa de mim,
eu, por inúmeros meios,
cerro olhos para ver
e bocas para chupar
teus seios.

Leila Míccolis

Foto:Elena Vasileva

sábado, março 11, 2006

Escritas na água



Para que fogueira nos leva esta marcha
indecisa?
Que significam os breves sinais vacilantes,
vivos, no intervalo de duas ondas?
Ah! Estas cintilações escritas na água:
-Luzes de um vórtice que se abre a cada passo.

Que maravilhas, iremos acordar, mais longe,
enlaçados, no meio das ervas ralas?

Sobre o oceano, o cheiro, (o toque) salino dos
corpos,
a exaltação transmutada, face ao céu escarlate,
a tentação do dia ao rubro - E tu sossegas.

Corre-te uma gota de suor pela face
adormecida,
aparo-a, ao de leve, com os lábios.
Como uma sombra silenciosa,
vou descobrindo os teus seios.

Não, não despertes,
quero sentir apenas o teu respirar pausado,
fixar-te a silhueta, contra a areia à solta.

Poema:Manuel Filipe

Foto:Yuri B

A água



Meus senhores eu sou a água
que lava a cara, que lava os olhos
que lava a rata e os entrefolhos
que lava a nabiça e os agriões
que lava a piça e os colhões
que lava as damas e o que está vago
pois lava as mamas e por onde cago.

Meus senhores aqui está a água
que rega a salsa e o rabanete
que lava a língua a quem faz minete
que lava o chibo mesmo da raspa
tira o cheiro a bacalhau lasca
que bebe o homem que bebe o cão
que lava a cona e o berbigão.

Bocage

Foto:Eric Richmond

sexta-feira, março 10, 2006

Desalento



Sim,
vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou
Infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim

Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar

Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei
Que eu só sei
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela
Que eu entrego os pontos

Vinícius de Moraes

Foto:Peter Arnold

Apelo



Não mais o beijo,
apenas a sombra
dos teus lábios em mim.
Nada do cio
afora o grito incontínuo.
Não mais teu sorriso,
só o suor
que vaga moribundo em minha pele.
Nada do gesto
além do pecado
(incondicional).
Não mais a nudez:
apenas o eco
do teu corpo em cópula.

Agostina Akemi Sasaoka

Foto:Elena Vasileva

quinta-feira, março 09, 2006

Frase sobre política



Daqui



Daqui

"A política costuma ser a arte de, em primeiro lugar, não dizer a verdade."

Antônio Guterres