quinta-feira, junho 30, 2005

Poema que aconteceu



Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.


A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.

Carlos Drummond de Andrade

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quarta-feira, junho 29, 2005

Espera



Esperava impaciente.
A espera no corpo. A espera antecipação.

Sentia já as mãos que conhecia. As mãos que a conheciam.
Quantas palavras ditas, descritas, em gestos. Em silêncio.
De gestos, silêncios, faziam também o amor.

Na boca sentia já outra boca.
Outra língua que não a sua. Outras palavras que não as suas.
Outro ar que não o seu.

Fechou os olhos. Contraiu as coxas.
Nas coxas cerradas, nos músculos contraídos, nas pernas, no sexo, sentia já o prazer. O sexo dele.
Os movimentos lentos primeiro. Urgentes depois.

Sorriu.
A recordação do olhar surpreso, da voz que lhe dizia:
- Ninguém ama como tu. Ninguém é entrega, dádiva, corpo e prazer como tu.

Sabia que ririam. Como sempre.
Sabia que seriam riso e alegria. Prazer de estar junto.

Ele entrou.
Olhou-a. Estendeu-lhe a mão.
Ela olhou-o.Recebeu-o.

Foto: Haleh Bryan

Conto: ENCANDESCENTE

As amoras



O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade

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terça-feira, junho 28, 2005

Trova do vento que passa



Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre

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Minha senhora de mim



Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito

Maria Teresa Horta

Foto:Paul Bolk

segunda-feira, junho 27, 2005

Diz-me tu



Diz-me tu como te quero.
Tu.
Que me calaste as palavras
Num beijo tão longo
Que foste a minha boca
Que foste respirar
Que foste a minha voz.
Diz-me tu como te desejo.
Tu.
Que me ardeste no corpo
Num abraço tão apertado
Que me tornaste e me deste
Um desejo maior
O desejo de nós.
Diz-me tu como te amo.
Tu.
Que me tomaste as palavras
Que me tornaste desejo
E a quem em silêncio chamo
E a quem ardendo amo.
Diz-me tu, meu amor.
Diz-me tu de nós.

Poema: ENCANDESCENTE

Foto: Haleh Bryan

P.S.: Pessoal vejam aqui mais um genial poema da ENCANDESCENTE:)

Queixa e imprecações dum condenado à morte



Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.

Passo a passo os encontro no caminho
Que os deuses e o sangue me traçaram.
E negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram.
Com angústia e com lama.

Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.

Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.

Sou eu que me chamo nas vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu quem me corto a mim mesmo o pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.

Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.

Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.

Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.

Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
de serem inúteis e ficarem vivos.

Ary dos Santos

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sábado, junho 25, 2005

Eu escrevi um poema triste



Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Mário Quintana

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sexta-feira, junho 24, 2005

Transparências



Na tua boca sem dizer uma palavra
Soletrei em todas as línguas a palavra amor
Sobre a tua pele desenhei, sem saber desenhar
Todos os contornos que tem o prazer
E por ser silêncio a palavra foi mais pura
E por ser transparente o gesto ficou gravado

Poema: Encandescente

Foto:Pedro Gomes

Poema



Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas do próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

Mário Cesariny

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A beleza:)



Foto: Kamil Wojcik

quinta-feira, junho 23, 2005

No País dos Sacanas



Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glandulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.

Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?

Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.

Jorge de Sena (1973)

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quarta-feira, junho 22, 2005

Eu, poeta? Não sou!



A poesia é completamente inútil!
Eu que o diga que a penso todo o dia.
É tão inútil como um fogão
Em casa de quem não tem comer
Como um livro em casa de quem não sabe ler
Como uma sanita, um autoclismo
Num dia sem água.
O Camões era grande, perdeu um olho
E a maior obra que escreveu
Não passou de uma encomenda.
A Florbela era grande e suicidou-se
E o Pessoa fazia terapia para ver se se juntava.
Não me falem dos prós da poesia
Conheço os contras.
Não me falem da necessidade de haver poetas.
Se o fosse renegava-me agora mesmo,
Assinava uma declaração dizendo:
Que se lixe a poesia, coisa inútil e desnecessária.
Eu, poeta?
Não sou!

Poema:Encandescente

Foto:Patric Shaw

Bilhete



Se tu me amas,
ama-me baixinho.

Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.

Deixa em paz a mim!

Se me queres,
enfim,

.....tem de ser bem devagarinho,
.....amada,

.....que a vida é breve,
.....e o amor
.....mais breve ainda.

Mario Quintana

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terça-feira, junho 21, 2005

Entrei no café com um rio na algibeira



Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.

José Gomes Ferreira

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Lágrima de preta



Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão

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segunda-feira, junho 20, 2005

Poeminha do contra



Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

Mario Quintana

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Palavras



Vi trigo vi fome
vi ferros vi feras
vi ruas vi nomes
vi grades vi esperas

vi armas vi muros
vi lutas vi mortes
vi surdos vi mudos
vi fracos vi fortes

vi mares vi terras
vi negros vi servos
vi fardas vi guerras
vi balas vi nervos

vi corpos vi cardos
vi fama vi glória
vi punhos vi cravos
vitória vitória

vi abril vi povo
vi rosto vi espanto
vi nosso vi novo
vi pouco vi tanto

tão cedo tão cedro
tão certo tão perto
tão raiva tão medo
tão mar tão deserto

tão lua tão leve
tão pobre tão pouco
tão fúria tão febre
tão longe tão louco

tão alto tão erva
tão raso tão resto
conversa conserva
tão lento tão lesto

tão urze tão hoje
tão zero tão tojo
tão fica tão foge
tão ontem tão nojo

tão mata tão morra
tão égua tão água
tão pinho tão porra
tão merda tão mágoa

Joaquim Pessoa

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Das Utopias



Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana

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domingo, junho 19, 2005

Os silêncios da fala



São tantos
os silêncios da fala

De sede
De saliva
De suor

Silêncios de silex
no corpo do silêncio

Silêncios de vento
de mar
e de torpor

De amor

Depois, há as jarras
com rosas de silêncio

Os gemidos
nas camas
As ancas
O sabor

O silêncio que posto
em cima do silêncio
usurpa do silêncio o seu magro labor.

Maria Teresa Horta

Foto:Paul Bolk

sábado, junho 18, 2005

Poema temperamental



Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.
Ó caralho! Ó caralho!
Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.
Ó caralho! Ó caralho!
O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Concerteza.
Ó caralho! Ó caralho!
Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.
Ó caralho! Ó caralho!
Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.
Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.
Ó caralho! Ó caralho!

Ó caralho!

Joaquim Pessoa

Foto:Rasto Cambal

sexta-feira, junho 17, 2005

Quem dirá de nós amanhã?



Que dirá de nós o amanhã?
Quando os dias em que nos amámos
Forem folhas de calendários
Arrancadas e esquecidas.
Quando as marcas dos nossos passos
Caminhando juntos
Desaparecerem
Cobertas por outras marcas, outros passos.
Quem dirá de nós amanhã?
Quando do nosso amor nada restar
Nem a saudade
Porque dos corpos seremos já ausentes
Não ficará do nosso amor senão palavras
Escritas em cadernos amarelecidos
Desbotados pelo tempo.

Poema:Encandescente

Foto: Margarida Delgado do Sabor a Sal

Deolinda de Jesus



A minha mãe,
É a mãe mais bonita,
Desculpem, mas é a maior,
Não admira, foi por mim escolhida,
E o meu gosto, é o melhor,
E esta é a canção mais feliz,
Feliz eu que a posso cantar,
É o meu maior grito de vida
Foi o seu grito, o meu despertar,
Canção de mãe é sorrir,
Canção berço de embalar,
Melodia de dormir,
Mãe ternura a aconchegar,
Canção de mãe é sorrir,
Gosto de ver e ouvir,
Voz imagem de sonhar,
Imagem viva lembrança,
Que faz de mim a criança,
Que gosta de recordar

A minha mãe,
É a mãe mais amiga,
Certeza, com que posso contar,
E nem por isso, sou a imagem que queria,
Mas nem sempre me soube aceitar,
Razão de mãe é dizer,
Mãe cuidado a aconselhar,
Os cuidados que hei-de ter,
As defesas a cuidar,
Saudade mãe é escrever,
Carta que vou receber,
Noticia de me alegrar,
Cartas visitas encontros,
Essa troca que nós somos,
Este prazer de trocar,
Canção de mãe é sorrir,
Gosto de ver e ouvir,
A ternura de cantar.

António Variações

Imagem daqui

A cidade é um chão de palavras pisadas



A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos

Imagem daqui

quinta-feira, junho 16, 2005

Comunicação



Como um poente congestionado
De vagalumes irreais
É o sete-estrelo desenfreado
Rosa de chamas descomunais

Saltam-lhe os pulsos como foguetes
As mãos são Vestas embriagadas
Parando as cenas dos banquetes
Em saturnais carbonizadas

Incham-lhe os seios como mechas
De Salomé desintegrada
Por quem cem líricos lamechas
Ficam ardendo sem dar por nada

Uma manada de trovões
Leva a cidade nos seus cornos
Assam marquesas nos salões
Como perus dentro dos fornos

Os rechonchudos anjos das casas
Expiam crimes ancestrais
Mamando restos de leite em brasa
Nos esqueletos maternais

As salamandras uterinas
Queimam devassos nas suas camas
Com quem celebram fesceninas
E derradeiras núpcias de chamas

Os acadêmicos no espeto
Fazem um esforço de memória
Para manterem o esqueleto
Em ademanes de oratória

Em catedrais de mil archotes
Numa luxúria de extrema-unção
Um frenesi de sacerdotes
Tem um orgasmo de Inquisição

As labaredas quais proxenetas
Dos cidadãos mais importantes
Levam incêndios de meias pretas
A mercadores de diamantes

Logo que estoura algum ministro
E a sua alma estruma os campos
Rebenta um trigo mais sinistro
Nesta seara de pirilampos

Nos semicúpios incandescentes
Dos seus tesouros derretidos
Os milionários têm repentes
Têm remorsos de homens falidos

E um Desejado de lua nova
Noivo da Pátria vem finalmente
Buscar a noiva para a sua cova
E dá-lhe a Morte como presente

Natália Correia

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quarta-feira, junho 15, 2005

Álvaro Cunhal



"Arte é liberdade. É imaginação, é fantasia, é descoberta e é sonho. É criação e recriação da beleza pelo ser humano e não apenas imitação da beleza que o ser humano considera descobrir na realidade que o cerca."(p.201)

Álvaro Cunhal

Editorial Caminho, Lisboa, 1996

Desenho de Álvaro Cunhal

Beatrice



Nem visao, nem real: amor! amor somente!...
Pois quem sabe o que diz esta palavra - amor - ?
Quando deixa cair no peito esta semente,
Diz o que ha-de brotar, acaso, o Deus-Senhor

Somente amor... Somente?! e pouco esta palavra? Duas silabas
so - em pouco um mundo esta -
Loucos! mas, quando o amor se expande, e cresce, e lavra,
Bem como incendio a arder, tao pouco inda sera?

Gota, que alaga o mundo! atomo, e apos, colosso!
Mas este nada ou mundo, a mim quem mo aqui pos!
Foi Deus! de Deus me vem... e a Deus medir nao posso:
E imenso o que vem dele... os nadas somos nos.

E o nada, que me abriu no peito e, feito imenso,
O encheu, bem como um vaso, abrindo, encheu a flor,
Ha-de alagar teu peito e ser do templo incenso...
Mulher! has-de escutar, que eu vou falar d'amor!

Falar d'amor?!... se ele e como uma essencia,
Que nos perfuma, sem se ver de donde...
Se ele e como o sorriso da inocencia,
Que inda se ignora e, p'ra sorrir, se esconde...

Se e o sonho das noites vaporoso,
Que anda no ar, sem que possamos ve-lo...
Se e a concha no oceano caprichoso,
Se e das ondas do mar ligeiro velo...

Se e suspiro, que oculto se descerra,
Se escuta, mas se ignora de que banda...
Se e estrela, que manda a luz a terra,
Sem se ver de que paramos a manda...

Se e sonho, que sonhamos acordado...
Suspiro, que soltamos sem senti-lo...
Sopro que vai dum lado a outro lado...
Sopro ou sonho, quem pode repeti-lo?

Falar do amor... do amor! o sempre-mudo!
Se e segredo entre dois, como dize-lo,
Sem divulga-lo, sem que o ouça tudo?
Se é misterio encoberto, como ve-lo?...

Antero de Quental

Foto:Howard Schatz

terça-feira, junho 14, 2005

Cavalo à solta



Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve breve
instante da loucura.

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa.

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo.

Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.

Ary dos Santos

Foto:Alberto M

Porque não soube merecer



Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi
não sei quem sou

António Ramos Rosa

Foto daqui

domingo, junho 12, 2005

O Espanador



Vade retro
vate recto
vá-se retrodecantar
vate vidente concreto
do espaço por ocupar.
Vade retro
ante projecto
do poema circular
pousado como um insecto
nas sobras do intelecto
que ontem comeu ao jantar.
Vade retro
vá de metro
vá de burro passear
mas não leve o alfabeto
que se pode constipar.

José Carlos Ary dos Santos

Imagem daqui

Da música

Mais uma corrente que me foi passada, desta vez a da música pela lazuli. Obrigada:)

1-Tamanho total dos arquivos no computador (apenas da música):

1,95GB.



2-Último disco que comprei:

Não comprei, mandaram-ne pelo msn os "Humanos" (música do António Variações, de que gosto muito).

3-Canções que estou a escutar agora:

Os Humanos.

4-Canções que oiço frequentemente ou que têm algum significado especial para mim:

No woman no cry- Bob Marley
Todas dos U2
Todas dos Doors
Quase todas do Caetano Veloso
Todas da Adriana Calcanhoto
e muitas mais....

5-Lanço o testemunho a quem quiser responder:) Podem responder até se quiserem na caixa de comentários ou nos vossos blogs;)

Imagem daqui

Dúvida



Amor
a tua voz
e a minha sensação de vácuo

de liberdades paralelas
ontem
esquinas encontradas
no ângulo dos lábios

Amor
a tua lâmpada de nevoeiro
sulcado
manhãs de aves
súbitas
com noites inventadas

nada
é o teu rosto
insetos de vertigem
sem paisagem.

Maria Teresa Horta

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sábado, junho 11, 2005

Pôr do sol



Para quem quiser divagar com um poema, uma frase, ou uma palavra sobre a foto:)

Foto: David Watson

A Diferença Que Há



A diferença que há entre os estudiosos e os poetas
É que aqueles passam a vida inteira com o nariz num assunto
A ver se conseguem decifrá-lo, e estes
Abrem o livro, lêem três páginas, farejam as restantes
(nem sequer todas) e sabem logo do assunto
o que os outros não conseguiram saber. Por isso é que
os estudiosos têm raiva dos poetas,
capazes de ler tudo sem Ter lido nada
( e eles não leram nada tendo lido tudo).
O mal está em haver poetas que abusam do analfabetismo,

E desacreditam a gaya Scienza

Jorge de Sena

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sexta-feira, junho 10, 2005

A Dentadura



As palavras concretas
são autopoetas
autorroedoras
autodigestivas
mas não auto-sangue
mas não autovivas..
As palavras setas
são como os poetas
velobicicletas
que pedelamtentam
pelas viasvidas
que pedalamtentam
que pedalam asnam
comendo violetas
mastigando urtigas.
As palavras poetas
dispostas aos ramos
de rosas selectas
nas antologias.
As palavras ostras
da literatura
num colar de pérolas
de puericultura.
As palavras nastros
as palavras lastros
que fazem dos astros
uma dentadura.

José Carlos Ary dos Santos

Imagem daqui

quinta-feira, junho 09, 2005

Ame...



Ame com amor.
Encontre nos seus sentimentos a sua
alegria.
Não procure nos valores materiais
a sua tristeza.

Ame...

Ame com amor
e jamais com interesse.
O carro é frio e insensível;
As roupas bonitas e coloridas não representam
nenhuma emoção;
O físico forte é atraente mas
decepcionante.

Sim, tudo é belo, mas nada é
real...
a não ser que você

Ame...

Ame com amor.
Pois vivemos em função desse sentimento
tão nobre.
Aquilo que é material degenera e
enferruja.
O dinheiro maltrata e mata.
As casas e prédios o tempo
consome.
As roupas saem da moda.
O corpo apodrece.
O mundo acaba.
O amor fica!

Ame...

Ame com Amor.
Não pense naquilo que você pode ganhar mas no amor
que você vai sentir.

Ame...
Ame com amor, e jamais finja que o sente sem
realmente senti-lo.

Ame...

Sem carro, sem moto, pois o que vale é o
coração.

Ame...

Mas ame com amor!

AUTOR DESCONHECIDO

Foto:Tamtam Tamtam

PS: Recebido via e-mail

Poema sobre a recusa



Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

Maria Teresa Horta

Foto:Howard Schatz

quarta-feira, junho 08, 2005

Lembra-te



Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny

Foto:Michael Vahle

terça-feira, junho 07, 2005

calor



Porque hoje está muitooooooooooooooo calor!

Foto:Leigh Perry

Não passou



Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.


Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão- a tua mão, nossas mãos-
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?


Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.

Carlos Drummond de Andrade

Foto:Howard Schatz

segunda-feira, junho 06, 2005

A boca



A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.

Eugénio de Andrade

Imagem daqui

domingo, junho 05, 2005

Notas para o diário



deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.

Al Berto

Imagem daqui

sábado, junho 04, 2005

Amador sem coisa amada



Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.

António Gedeão

Imagem daqui

sexta-feira, junho 03, 2005

Brincar contigo...Posso?



Quero despir-te.
Para quê a roupa se me impede de ver a tua pele?
Deita-te. Assim. Nu.
Deixa-me olhar-te. Decorar-te.
Quero guardar-te nos olhos para te lembrar quando não presente.

Gosto de brincar com os teus pés.
Subir em ti, assim, em carícias lentas.
Gosto da tua pele molhada. De te cobrir de saliva e suor.

Espera.

Deixa que me demore no teu sexo. Que o olhe. Que o desperte.
Enquanto me olhas. Enquanto nos vês.
Enquanto murmuras: - Não pares meu amor.

Deixa-me suspirar. Derramar. Deleitar-me com o teu corpo.
Descobrir a que sabe o teu peito.

Gosto das tuas mãos.
De lamber e morder um a um os teus dedos.
Enquanto te amo. Enquanto me amas.
E dizer na tua boca:
- Vem comigo meu amor.

Brincar contigo...
Posso?

Foto: Marcus Carlsson

Poema da Encandescente

Poemas



Na grande confusão
deste medo
deste não querer saber
na falta de coragem
ou na coragem de
me perder me afundar
perto de ti tão longe
tão nu
tão evidente
tão pobre como tu
oh diz-me quem sou eu
quem és tu?

António Ramos Rosa

Foto:Michael Vahle

quarta-feira, junho 01, 2005

Verde



Respiro o verde
Da beleza.
A dança das folhas
O balançar dos ramos
Os ninhos dos pássaros
O seu chilrear
Tudo é natureza.
A Mãe de todos nós
Como diziam os índios.
Eles sabiam
Dançavam,
Os xamãs evocavam os deuses
E tudo era natureza,
O verde…

Foto:Stephen Penland

Poema Antigo



O homem que percorro
com as mãos
e a lua que concebo
na altitude
do tédio


o oceano
penso paralelo — ventre
à praia intata
das janelas brancas
com silêncio

ciclamens-astros
entre
as vozes que calaram
para sempre
o verbo — bússola
com raiz — grito de relevo

O homem que percorro
com as mãos

a estátua que consinto

«a lua que concebo.

Maria Teresa Horta

Foto:Howard Schatz